O Inferno

Por Cruzeiro do Sul

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A doutrina do inferno causa dificuldades para muitas pessoas, no entanto, a sua reta compreensão é essencial para a nossa relação com Deus. Além disso, a própria compreensão do que seja o céu fica prejudicada se não entendermos bem o que é o inferno.

Deus oferece livremente aos seres humanos uma comunhão de amor e espera deles uma acolhida igualmente livre. A comunhão de amor não pode ser imposta, uma vez que o amor é, por sua própria natureza, livre. Por isso, o mistério da liberdade humana nos obriga a ter presente a possibilidade de uma recusa. Somente se essa possibilidade for real, é real também a nossa liberdade que só se torna plena na acolhida do amor que Deus nos oferece.

A recusa do amor se exprime no ódio contra Deus e os irmãos, no fechamento diante do próximo e de suas necessidades. Quem se obstina nessa atitude e nela morre fica separado definitivamente de Deus. Tal separação definitiva é o estado de inferno.

Rigorosamente falando, Deus não fez o inferno. Fazem-no as escolhas livres das criaturas que dEle se separam. Deus não manda ninguém ao inferno; é o pecador empedernido que se separa de Deus e não quer entrar na casa do Pai. O condenado, na realidade, é aquele que se auto-excluiu da comunhão com Deus e os santos.

Deus não quer propriamente punir os condenados, mas, estando eles privados de todos os bens, é a pena que os persegue (cf. Santo Irineu, Adv. Haer., V,27,2). Deus não inflige ao condenado o mal; é ele que abandona o Bem supremo (Santo Agostinho, En. Ps. 5,10). Por isso, é preciso insistir que o inferno não nega absolutamente a infinita bondade de Deus. Afirma somente o imenso respeito que Deus tem pela liberdade do ser humano que foi criado à sua imagem. Deus não quer anular a liberdade: sem a liberdade o ser humano não é humano; sem ela, salvação alguma é humana; sem ela, não há nenhuma possibilidade de acolhida responsável do amor e da graça de Deus.

A possibilidade do inferno reafirma, portanto, a nossa responsabilidade pessoal nas escolhas que fazemos em vida. O nosso destino eterno depende do exercício da liberdade. Por isso, temos necessidade da conversão contínua. Uma vez que desconhecemos o dia e a hora de nossa morte, quando seremos chamados a prestar contas de nosso viver, somos chamados a uma vigilância diuturna.

Deus quer que todos sejam salvos. Por isso a Igreja rejeita veementemente a ideia da predestinação ao mal e ao inferno. É a decisão livre contra Deus e os irmãos, o pecado mortal e a obstinação nele que provocam a condenação. O mistério da liberdade humana aparece, dessa forma, em toda a sua seriedade ante a possibilidade tremenda da auto-exclusão da salvação. Portanto, sem esquecer a bondade e a misericórdia divinas, é irresponsabilidade minimizar as duras expressões de Jesus sobre o inferno (Mt 5,22.29; 13,42.50; Mc 9,43-48; Mt 13,41-42; 25,4).

O sofrimento do inferno consiste na separação definitiva de Deus, uma vez que a felicidade do ser humano e os bens que ele aspira e para os quais foi criado se encontram somente nEle. O sofrimento do inferno é constituído também pela separação dos outros e do cosmos. Em contraste com a felicidade do céu, a pena do inferno decorre da relação negativa com o Criador, com a realidade criada e com o mundo transformado.

Muitos se perguntam: são muitos os que se perdem? Jesus respondeu a essa pergunta (cf. Lc 13,23ss), afirmando que a questão do inferno ou da salvação não pode ser posta em terceira pessoa (“eles são muitos ou poucos?”), mas somente em primeira pessoa (“estou eu no caminho da salvação?”). A cada decisão que tomamos, estamos decidindo o nosso destino eterno. Por isso, em vez de ficarmos preocupados com o número dos que se salvam, devemos cair na conta de que as escolhas que fazemos estão carregadas do sentido da eternidade. Ao mesmo tempo, devemos confiar na graça de Deus e esperar da Sua misericórdia o dom da salvação para nós mesmos e para os outros.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba