Do tempo da Zagaia

Por Cruzeiro do Sul

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Para este artigo, pensei, dia desses, um pouco no passado do passado de um tempo que se perdeu no próprio tempo. Uma época em que a sociedade era 100% analógica e os computadores nem sequer eram cogitados. A máquina de escrever, a calculadora manual, a vitrola e o disco de vinil eram sinônimos de modernidade. Nesse mundo de antigamente, no dizer de minha saudosa avó materna, Luzia Mariozzi, um fio de bigode valia mais do que qualquer assinatura. Assim, sem perceber, deparei-me com lembranças de hábitos, costumes e expressões dos nossos antepassados. Vieram frases inteiras que, na minha meninice ouvia dos meus pais, mas não entendia. E eles também não faziam questão de explicar. Então, um filme amarelado passou na minha tela mental, com imagens de pessoas que um dia fizeram parte da minha vida e, de algum modo, deixaram lembranças.

Mas, lembrar é algo bom ou ruim? Os psicólogos são unânimes em afirmar que esse sentimento é natural em nós, humanos, principalmente para quem já passou dos 60 anos. Mas, há quem diga que saudade não tem idade. Aliás, pelo que reza a lenda, tal palavra só existe em nosso idioma. Logo, relembrar é uma atividade saudável. Porém, o que não se pode é viver apenas do passado, numa eterna melancolia, como bem lembrou o poeta lusitano Fernando Pessoa, ao poetizar que o povo português sofria de um “sentimento órfico”. Ou seja, a eterna saudade do rei Dom Sebastião — um dos reis mais queridos de Portugal — que teria morrido numa batalha no interior da África, cujo corpo nunca foi encontrado.

Por isso, segundo alguns especialistas em comportamento humano, quem tem descendência lusitana carrega uma carga de nostalgia acentuada, embora a chamada memória afetiva faça parte de todo o ser humano, principalmente quando se tem uma idade avançada. Naturalmente, o saudosismo passa a ocupar um bom espaço da mente. Ou seja, são recortes de outrora que permanecem ativos. Talvez, em um adolescente esse sentimento não esteja tão vívido, pois sua memória emocional está em formação, algo que se constrói com as experiências existenciais.

A isso, os adeptos da filosofia antroposófica classificam de “registros akáshicos”, ou seja, são anotações de tudo que uma pessoa viveu durante sua passagem por este plano terra, do primeiro choro ao último suspiro. Para essa filosofia, quando alguém falece, esses registros não se perdem no tempo, mas permanecem latentes em seus familiares. Explicando: são fragmentadas lembranças de entes queridos que já partiram, mas deixaram suas marcas em seus descendentes. Vez ou outra, essas lembranças nos chegam como ‘flashes’, principalmente em datas especiais: aniversários (de nascimento e de morte), Dia de Finados e Natal/Ano Novo.

Curiosamente, para atenuar tamanha dor da saudade de seus parentes, o poeta Manuel Bandeira encontrou um modo mais delicado para se referir aos familiares e amigos falecidos: “estão todos dormindo, dormindo tranquilamente...”. Nesses versos, Bandeira reforça a ideia de que a morte não passa de um sono letárgico. Quem estuda literatura, sabe que o eufemismo é uma figura de linguagem que visa suavizar o sofrimento das pessoas, algo que nossos antepassados sabiam fazer muito bem, principalmente diante de situações que pareciam irremediáveis.

Concluindo, quem tem mais de cinquenta anos, com certeza, deve se lembrar de algumas expressões engraçadas que os adultos falavam, tais como: “Ih, isso é do tempo da Zagaia”, para falar que algo era muito antigo. A zagaia era uma pequena lança deixada atrás da porta para afugentar animais. Meus pais falavam: “O galo onde canta, janta!”, para quem chegasse atrasado. Temos ainda: “Que ideia de jerico”, quando algo dava errado. “Se não tem remédio, remediado está”, para pregar a resignação dos fatos. Ou: “Fulano está por conta do Meireles”, quando a pessoa estava sem rumo. Até hoje não sei quem é esse tal de Meireles. Bom domingo!

João Alvarenga é professor de redação.