A arte de ouvir
Edgard Steffen
“Com este aparelho você ouvirá os sons do coração,
mas não se esqueça de ouvir os sons que vêm da alma”
(Dr. Paulo Emílio João, cardiologista)
O autor da frase que abre esta crônica teve a satisfação em ver seus filhos seguirem a profissão médica. Ao presentear o primogênito com um estetoscópio, alertou-o de que não bastaria ouvir somente os sons dos órgãos. Deveria prestar atenção aos ruídos que vêm da alma do cliente. Em outras palavras, ouvi-lo. Sábio conselho. Válido mesmo diante da parafernália tecnológica que permite ao médico escarafunchar a intimidade anatomofisiológica do paciente.
Certa ocasião, cliente fez uma observação que me encheu de orgulho. -- “Dr. Edgard, o senhor sabe ouvir”. Provável que amigos concordem. O pessoal lá de casa talvez não. A observação do cliente baseava-se no exercício de minha profissão. A dos amigos por convívio em atividades sociais ou lazer. Na consulta, obrigatória concentração profissional. No lazer, natural cortesia social. Na intimidade do lar, concentração e cortesia também são obrigatórias, mas jornal, leitura, televisão ou música aliadas aos múltiplos focos domésticos dão-nos aparência desatenta. Notem, reporto-me a um tempo em que não existiam celulares hipnotizadores nem redes sociais.
A ida ao consultório do puericultor muitas vezes funciona como válvula de escape para mães inseguras, submetidas à pressão familial em tudo que se refere ao rebento. Se o médico prestar bem atenção às queixas, surpreenderá que as principais referem-se ao ambiente familiar e sogras dominadoras. Conheci pediatras de altíssimo nível que pecavam por exercer pediatria “veterinária”. Conheciam muito, examinavam minuciosamente a criança, mas cerceavam manifestações dos adultos que a cercavam. Alguns não permitiam a entrada das avós na sala de consultas. Devem ter perdido pistas facilitadoras do diagnóstico.
Acreditar em avó que se queixava de que o neto tinha crises de intensa palidez e sudorese -- médicos e familiais atribuíam ao excesso de agasalho -- foi a pista que me levou a cuidadosa palpação do abdome onde estava a causa: tumor da suprarrenal das dimensões de uma laranja.
Menino internado em Pronto Socorro, com pneumonia resistente aos antibióticos. Solicitaram meu parecer. Ouvir a mãe forneceu a pista para mudar o diagnóstico. “Doutor, ele estava alegre brincando no quintal. De repente entrou em casa tossindo sem parar; daí em diante só foi piorando.” Pneumonias são precedidas de febre e outros sintomas. A instantaneidade no aparecimento da doença sinalizou para aspiração de corpo estranho. Grão de feijão (não aparece na radiografia) fora aspirado e provocara a “pneumonia”.
Avó trouxe nascituro de poucas semanas. A mãe estava internada noutro município. O bebê estava muito mal. Desidratado, desnutrido, ranhento e gemente. Internei-o para hidratá-lo e pedir exames. Numa das passagens pelo quarto ouvi avó e tia conversando. O prematurinho era produto de namoro de férias, às escondidas da família. O pai era caminhoneiro. A mãe, adolescente estudava em colégio interno. Escondera a gravidez enfaixando-se. Os largos uniformes ajudaram-na. Não fizera pré-natal. A história levou-me à suspeita de sífilis congênita. Os exames confirmaram. A velha e boa penicilina curou a criança.
Menina de cinco anos foi trazida ao hospital em coma profundo. Nenhum sinal neurológico, história de traumatismo ou intoxicação. Glicemia normal. Único achado, leve escoriação nos joelhos. O irmão gêmeo contou que a irmã caíra no recreio. Na escolinha somente lavaram o ralado. Eles ficavam sozinhos na casa até que a mãe chegasse do serviço. “Ela disse que tava doendo o joelho e eu dei remédio pra ela”. Na fala do menino a solução para o caso. O remédio que ele achou (subindo em mesa e cadeira) era fenobarbital, receitado para a insônia da mãe, abandonada pelo marido quando os gêmeos eram bebês. A mãe o guardara cuidadosamente e nem mais se lembrava que tinha o remédio em casa.
Edgard Steffen é escritor e médico pediatra. E-mail: edgard.steffen@gmail.com