A capa que o encobre
Neusa Gatto
Os primeiros acordes de “Come as you are”, do Nirvana, saem da vitrola. Isso, uma vitrola, daquelas antigas. Disco original. Preciosidades. Uma delas. Tem muitas, que ele considera como tais. O som invade o ambiente. Um homem então surge na varanda. A porta aberta deixa ver um ser. Nem triste. Nem alegre. Apenas alguém ali envolvido em uma longa capa preta. E ele dança com ela naquela noite escura. Seu olhar, no entanto, apesar do lazer, parece virulento. É assim, consigo mesmo costuma ser autêntico. Inevitável.
O gato sobe no parapeito da janela e o encara. Observa. O conhece. Sabe que, algumas vezes, ele fica assim. Não o maltrata. O bichano é confiante. Tem personalidade. Se mantém ali. A olhar. Duas forças. A humana e a felina a se contraporem. Se ajustam. Compreendem um ao outro. Como acontece ali.
Os olhares se desfazem. Ele dá mais um gole na vodca pura gelada. Abre a capa frente ao espelho e se expõe. Está nu. Observa refletida, uma imagem de tristeza. Chega mais perto. Apalpa as pernas. Os braços. Vira de lado. É feio.
Sabe disso. Mas não importa, vencido em seus atributos lhe resta o desamor. É da sua natureza. O ser sozinho. Das sombras. Da silhueta escura à luz do poste. Das esquinas. Um elemento à caça de luz. Sabe do vulcão demoníaco que tem por dentro. Suas trevas. Sua solidão. O escuro onde sofre e faz sofrer. Padece nas lembranças de um paraíso que um dia teve.
Por que haveria paixão em demônios, pensa? Como um deles, quer apenas enredamentos e artimanhas, a provocar mentes ao seu redor. Expressa isso. Esse o propósito. Que serei eu? que me cansei de trajetos inúteis? Cujas estruturas mentais, forjadas na vida, me condenaram ao isolamento, analisa.
Levanta a cabeça. Parece sair de um transe infernal. O gato se aproxima dele e ganha um afago. As visões demoníacas parecem abandoná-lo lentamente. Como se saído de um transe, seu rosto se torna dócil. Se transmuta. Tranquilo. Sorridente. Até bonito.
O gato sobe em seu colo. Os dois adormecem juntos.
Então, ela fecha o livro que lê. Que história! Fala consigo mesma. Analisa a capa. As referências... Pensa: por pouco, ficou lá na prateleira do sebo. Relutou ao comprar. Fez bem em trazer... até a música que ele ouve parece ainda soar ao seu ouvido. Não é que o personagem até lembra um amigo? Agora, a curiosidade a atrela. Quer saber onde vai dar essa história.
Neusa Gatto é jornalista e produtora de vídeos.