A liberdade das árvores
Leandro Karnal
Georges-Eugéne Haussmann está no Instagram de quem vai a Paris? Duvida? Em algum momento, desponta a icônica avenida dos Champs-Elysées. A sensação de ordem, simetria, monumentalidade e caráter teatral de tudo é fruto de um esforço do Barão de Haussmann e do seu chefe, Napoleão III. Árvores simétricas, distâncias regulares, tampas de bueiro unificadas e, supremo requinte, em alguns lugares até as fachadas foram adaptadas a um modelo padronizado. Os merovíngios tornaram Paris sua capital.
Luís XIV e Napoleão I criaram monumentos e cúpulas. Foi Haussmann que fez Paris saltar para o Instagram. Depois vieram suplementos estéticos como a torre Eiffel, a ponte Alexandre III (inserções republicanas) e até engastes contemporâneos (como o arco de La Défense ou as pirâmides do Louvre), porém a assinatura autoral do quadro da cidade luz é do conspícuo barão.
Paris foi, no Segundo Império (1852-1870), um dos grandes experimentos urbanos do mundo contemporâneo. Cidades planejadas a partir do nada existiram antes (Fatehpur Sikri na Índia mongol) e continuarão depois (nossa Brasília), mas a intervenção em Paris foi realizada no coração de uma cidade viva, histórica, orgânica e, em que pese o resultado admirável, apresentou custos econômico e humano elevados.
Esta não é uma coluna sobre as etapas da reurbanização da capital francesa. O tema é vasto. Eu tento pensar algo muito comezinho: por que ficamos felizes, impressionados, tendentes a muitas fotos nas ruas de Paris? Creio que a regularidade matemática remete à ordem, acostuma o olhar, cria uma zona de conforto no nosso cérebro e chamamos isso de beleza. Uma casa pode estar limpa ou suja e isso não envolve o conceito de bagunçada ou ordenada. A limpeza atinge o nariz; a ordem estimula o olhar. O flâneur, a personagem ambulante e testemunha da cidade que o poeta Baudelaire registrava, fica exercitando o olhar. Somos, turistas e congêneres, flâneurs de uma concepção do século 19, um misto de cenografia e de higiene social repressiva.
Feita a introdução gaulesa, penso na cidade em que moro, São Paulo. Há um aspecto que iguala a capital a muitas cidades do Brasil: a liberdade de árvores, vasos, calçamentos, etc. Cada proprietário é um novo Adão a renomear a frente do seu Éden. Comecemos pelas árvores. A City, a companhia de planejamento que interferiu em tantos pontos da capital paulista, usou muito a tipuana (Tipuana Tipu), árvore bonita e de rápido crescimento, ideal para dois grupos: planejadores apressados e cupins. Ambos amam a árvore que cai às dúzias por aqui a cada vendaval. As velhas tipuanas foram tombando e novos bairros surgindo. Substituindo aquelas e semeando novas, qualquer rua é um tratado internacional de dendrologia, a parte da botânica dedicada às árvores. No singelo quarteirão que ocupo na Pauliceia, há resedás, manacá-da-serra, pata-de-vaca, fícus, um alfeneiro, uma embaúba e kaizukas (os belos pinheiros retorcidos do Extremo Oriente). Se incluir áreas do jardim dos prédios, surgem ipês, um pau-brasil, guapuruvu e outras que, malgrado meu imenso interesse, não reconheço.
As árvores estão sobre calçadas que também mudam o pavimento a cada número. O urbanismo se reinicia com o novo IPTU e, retirando as bravas e perigosas tipuanas altaneiras, será difícil ter indivíduos da mesma espécie vegetal em seguida.
Seríamos a miscelânea da liberdade ou da anarquia? Aceitamos terríveis ditaduras e imensas humilhações legais, todavia resistimos com a liberdade de nossas árvores.
Poderíamos dizer que partilhamos, ao menos, um Liberalismo botânico... Sim, lancem impostos terríveis e criem regras ridículas e oscilantes sobre kits de primeiros socorros para automóveis. Acatamos! Nossa resistência será na liberdade das espécies vegetais! Viva a democracia botânica das cidades brasileiras! Viva as calçadas infinitas! Serão a La Rochelle da nossa consciência cívica. Declaração Fundamental dos direitos do cidadão agricultor-urbano: todas as árvores são iguais perante a lei, porém o gosto do proprietário é absoluto.
Saindo de miniflorestas urbanas com variedade infinita de espécies, olhamos para os frondosos plátanos dos Champs-Elysées. Enfileirados, distâncias regulares, podados, erguendo-se sobre grades unificadas e com prédios quase todos da mesma altura. Sergio Buarque de Holanda (Visão do Paraíso) disse que os portugueses criavam modelos urbanos a partir do arquétipo do semeador, plantando prédios de forma aleatória. Os espanhóis, pelo contrário, utilizariam o modelo do ladrilhador: ordem geométrica ao redor de uma grande praça central.
Pare e observe sua cidade. Perceba a variedade vegetal e de calçamento. Reflita se é um sinal cultural importante que cada vizinho ignore tudo que está ao lado e à frente, e, como um novo Prometeu, recrie o fogo criador só para seu pedaço de universo. O que nossas árvores e nosso planejamento urbano indicam sobre nós? Por que nossa liberdade morre na árvore? Bom domingo para todos nós.
Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul