Amor, sublime amor
Leandro Karnal
Ele ronca. Muito. Ela fica sem sono e irritada. O evento começa, invariavelmente, às 3h da manhã.
Há mais... Ela também se irrita com o hábito dele de não utilizar jogos americanos ou toalhas para comer. A mesa está arranhada.
O sexo decaiu, mas ambos estavam preparados para o evento. Talvez fosse até um alívio. O espaçamento entre as ocasiões eróticas despertou uma desconfiança no começo. “Haveria outra ou outro?”, pensavam os dois. O caso não era de desejo que fugia do leito matrimonial para irrigar sofá de amante. Era apenas o declínio da vontade de ambos que, curiosamente, atribuíam ao cônjuge. Não aguentavam mais, sequer, o som da voz dela e dele. Mesmo os gestos delicados pareciam irritar. Aliás, o silêncio também irritava, tanto quanto a voz. As piadas dele, repetitivas, causavam uma raiva incontrolável da parte dela. Ela passava o dia ao celular e o olhar dele fuzilava esse hábito.
Casaram-se por amor, sim; apaixonados, até. Não havia um adultério. Inexistiam vícios ou violência. Tudo parecia ser, como ele dizia para amigos, “desgaste de material”. De tanto rodar, mesmo sem buracos ou acidentes, o carro apresentava barulhinhos iniciais, peças corroídas e, por fim, pane total. Ela dizia para a melhor amiga que ele era acomodado. Ele era arrastado para os eventos mais elementares como Natal na família dela. Nos aniversários, dez segundos após os parabéns, o marido queria ir embora.
Por que continuavam casados? Basicamente porque, para romper uma relação (sem violências etc.), você precisa de uma crença romântica. Faltava aos dois tal convicção. Qual seria tal fé? Não deu certo entre nós, porém, em algum lugar dessa combalida humanidade, existe uma cara-metade, uma pessoa com meu ritmo e jeito, um côncavo para meu convexo, ou, menos poeticamente, um chinelo velho para meu pé com joanetes. Os dois desdenhavam da utopia amorosa. O andar do carro com melancias, segundo velha metáfora rural, não ajeitara as pesadas frutas rasteiras sobrepostas na carroceria. Era mais grave, a estrada fora sem incidentes e os condutores não acreditavam mais no sentido de dirigir ou de comer melancias...
Deixaram de rir um do outro. Ambos tinham tantas coisas deliciosamente ridículas que seria algo interessante para um escritor cômico. Chegaram a ponto de uma Guerra Fria sem choques atômicos, com alguma espionagem, dois ou três acordos de leniência e algumas delações premiadas de parentes.
Obrigados a um evento em comum de uma prima mais insistente do que talentosa, compareceram a um teatro para a encenação de Romeu e Julieta. De repente, viram-se rindo nos momentos mais inadequados. Não eram as ambiguidades vulgares da Ama, risíveis ao extremo. Eram as declarações de amor... Romeu queria jurar pela Lua? Os dois seguraram a boca para não causarem escândalo público. Debatiam os infelizes amantes se era um rouxinol ou uma cotovia que cantava ao longe após a noite de amor total? Ele não se aguentou e disse baixinho: “Daqui a três anos será um urubu...”. Ela ouviu e não se aguentou. O riso foi tão estridente que os atores pararam no palco, para alegria da memória do Bardo. O público fuzilou. Eles pediram desculpas e se seguraram. Por fim, diante da gelada tumba dos Capuletos, entre venenos e adagas, na longa cena da morte teatral dos dois apaixonados, foi incontrolável. Ele e ela desataram em gargalhadas e tiveram de sair da plateia, perdendo o final iminente da peça e a estima da prima insistente.
Em distância segura e indo para o carro, voltaram a rir de forma como não faziam havia anos. Engasgavam com a veia cômica. Repetiam, de forma irônica, as falas dos apaixonados. Profetizavam o desastre se tivessem atingido, como eles, as bodas de porcelana (20 anos). Então, perto do carro, em um ato de impulso, beijaram-se ternamente. Tinham entendido que se odiavam por causa de um modelo de amor romântico. Tinham desejado ser todo casal incendiado pelo sentido alheio. Perceberam que não necessitavam um do outro para um sentido de viver. Uniram-se no ceticismo do amor ideal. Interpretaram como ódio o que era uma, afinal, dissonância em relação a um modelo criado na poesia provençal e italiana. Não era raiva, apenas era um choque entre elenco e roteiro. O texto não tinha sido escrito por eles. Isso causava o dano e o atrito contínuo, como se fosse uma peça de ballet clássico escrita para lutadores de sumô. E se lutassem em vez de bailar? Se dormissem afastados como sempre desejaram sem usar o ronco alheio como álibi? E se rissem juntos de todos os Romeus e Julietas do mundo? Se batessem palmas quando Leonardo DiCaprio se afogasse, congelado, porque isso o livraria da terrível necessidade de ser intenso como a bordo do Titanic?
A peça foi uma epifania. Ali, no carro, em pleno estacionamento, agarraram-se com o furor de um novo tipo de cio matrimonial. Não precisariam se amar como os dois noivinhos sobre o bolo de casamento. Eram, enfim, livres de roteiros estranhos a eles. Um ano depois da peça, celebraram as bodas de papel, aquele fato que assinala um ano de casamento. Estavam, enfim, casados. O papel era, agora, em branco para que cada um escrevesse sua realidade. A porcelana das bodas anteriores era frágil e deveria ser admirada para as visitas. O papel era multiúso. É preciso ter esperança para amar e, talvez, alguma liberdade para os papéis.
Leandro Karnal é historiador e escritor.