Balada pelo que passa e pelo que fica
Leandro Karnal
Houve amores e amigos fundamentais no passado. Havia aquele grupo ótimo com o qual você saía há alguns anos. Como ocorreu a mudança? Como a paixão virou indiferença e, por vezes, até raiva? Oswaldo Montenegro pede que a gente faça uma lista dos afetos de há dez anos. “Onde você ainda se reconhece na foto passada ou no espelho de agora? Hoje é do jeito que achou que seria? Quantos amigos você jogou fora?”
Fernando Pessoa sugere uma atitude quando encontramos alguém que já foi importante e que hoje é menos ou nada. “Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos e, embora na vida adulta sigam outras afeições, conservam nos caminhos da alma a memória de seu amor antigo e inútil.” Sempre ouvirei essa poesia (escrita em prosa) escutando a voz de Maria Bethânia.
Alguns amigos estão inseridos em uma conjuntura profissional ou pessoal. Pertencem a uma temporalidade. Quebrado aquele momento, parte-se o vínculo cotidiano. Nos tempos do falecido Orkut, lembro-me vivamente, eu era acessado por pessoas que não via há 20 anos. “Leandro, que bom te reencontrar!” Falávamos, animados, daquela época. Perguntávamos sobre fulano. Ríamos do que era risível. Todos ficavam enternecidos quando havia a menção a um nome já levado deste mundo e que fazia parte da tropa. Surgiam mais alguns momentos de mensagens. Uma vez reencontrei um daqueles grupos. Só então todos percebiam que, se tínhamos passado 20 anos sem vida em conjunto, era porque já não importava aquele vínculo. Passado o vento da memória avivada, a chama não ressurgia, a cinza dominava. Éramos outros. O primeiro reencontro de um grupo querido foi o último.
O tempo devora tudo. Todo ardor arrefece. Paixões amornam. Votos são fustigados pela realidade. Os budistas insistem na impermanência de tudo. Santa Teresa reafirmava: “Só Deus basta!” Tudo parece destinado ao fim.
O pior não é apenas o prazo de validade incontornável dos grupos e amigos que tivemos. Mais dramática é a luz de alerta que lança sobre os atuais. Se já houve pessoas de intimidade total que hoje estão distantes, o que impede que a pessoa a quem confio minha alma venha a virar uma desconhecida no quarteirão seguinte? Ter dito eu te amo e ter deixado de amar implica saber-se possuidor de todos os precedentes para a nova queda?
Algum distanciamento sobre a pretensão de eternidade é saudável para toda relação. Impede, ao menos, de cometer o desatino de tatuar o nome da amada no braço. O rio da mutação constante é uma regra do universo. Juntam-se Lavoisier e Heráclito. A mudança é cláusula pétrea do universo. Porém, como somos transgressores, criminosos constantes e altivos contra as disposições naturais, surge um espaço de exceção.
Por um acidente, descuido do fluxo da mutação ou capacidade de ressignificar tudo, temos amigos que atravessam as conjunturas. Há algumas relações, bem poucas, que estabelecem um vínculo permanente. A amizade transformou-se juntamente com tudo. Não trabalhamos mais juntos, estamos em lugares distantes, trocamos de esposas e de maridos, envelhecemos e, diante de nós, está ela ou ele, o amigo permanente. É um milagre, uma pérola rara, um esforço que combina vontade e algo de aleatório.
Há três ou quatro, talvez cinco desses seres na minha biografia. Quase todos temos um pequeno e raro punhado da safra dos amigos vitalícios. São flores que continuaram vingando em ramagens que continham outros botões que não vingaram. São sobreviventes. Mais: hoje a relação está mais próxima do que antes. O vínculo contrariou o declínio e apontou para uma ascensão adiante. A idade é boa para as amizades. Deixamos de competir. Diminuíram ardores. Ficamos mais sensíveis. O tempo desacelerou. Alguns até aprendem a escutar. A confiança é uma conquista. O cadinho cronológico depura as impurezas. Nossas chatices incontornáveis viraram até um charme extra. A comunicação refinou-se e não precisa mais apenas de palavras. Os amigos se entendem com um leve erguer de sobrancelha, um discreto esgar de sorriso ou um único menear de cabeça.
Não tem jeito. Para obter a flor rara da amizade perene, você precisa cultivar também o campo do banal. Entre cada 100 conhecidos, 20 ficarão mais íntimos. Cinco farão parte do “inner circle”, do mais profundo da sua alma. Um, com sorte e esforço, chegará a você de verdade. Logo, como na parábola dos evangelhos, urge espalhar sementes. Diferentemente do semeador que vê sucesso no grão centuplicado, a seara dos amigos busca um único e raro germinar. Não se busca a semente que se multiplicará, porém a resposta especial e ímpar de uma planta que se insurge contra o tempo. Assim, entre o semeador e o broto raro, surge algo extraordinário. A mais curiosa das metamorfoses ainda é o fato de que eu sou o semeador de cada amigo verdadeiro meu e ele ou ela é o meu agricultor também. A amizade sincera é um caminho recíproco. Sou planta-semeador e flor-jardineiro. Cuido e sou cuidado, semeio e recebo água, existo com e para e cresço amparando-amparado. Esse é mistério único de uma luz rara como um cometa. E, como todos os cometas, podem dar voltas nas profundezas mais longínquas do éter sideral. Um dia ele voltará como se nunca houvesse partido. É preciso ter muita esperança e, pelo menos, um amigo assim.
Leandro Karnal é historiador e escritor.