Cidades desnudadas

Por

Crédito da foto: Erick Pinheiro / Arquivo JCS (26/6/2017)

Crédito da foto: Erick Pinheiro / Arquivo JCS (26/6/2017)

Edgard Steffen

E resolviam as divergências em versos que

descreviam verdadeiras epopeias da existência

(Carlos Araújo in “Era uma vez a cidade dos poetas”)

A leitura da coluna “Um outro olhar”* sugeriu-me o tema para esta que você está lendo hoje. “Poetenses (poemenses ou poetanos -- como definir a naturalidade?) traduziam suas vidas em versos, estrofes e rimas. Havia liberdade de entrar, ficar ou ir embora. Ficavam os que não se interessavam pelo lucro; saíam os que iam atrás de riqueza, porque poesia não dá dinheiro (sic). A poética Utopia teve o destino de todas as utopias. ... Sobraram ruinas (...) não se lê e não se houve a declamação de nenhum novo poema que traduza as angústias da solidão humana.”

Há 8 milhões de histórias na cidade nua... Esta é apenas uma delas (Naked City, 1958). Assim começavam os capítulos do velho seriado, em branco e preto, na televisão. Os detetives do 65º Distrito Policial da cidade de New York, rebolavam-se para resolver crimes e mistérios. A abertura sugeria que cada novaiorquino vivia e gerava estórias que podiam envolver segredos e comportamentos inimagináveis pelos seus vizinhos. Nosso velho Nelson Rodrigues resumiria numa frase curta: “De perto, ninguém é normal”.

Se aplicarmos o mote -- da série, não do Rodrigues -- para a realidade em nossas comunidades, a pequena e comportada Borá (SP) terá o potencial de 837, enquanto a desvairada megalópolis poderá contar mais de 12 milhões de estórias. Pensem na significância escancarada de gente que os fados jogaram na insignificância. Há os que tentam boiar na enxurrada das enchentes ou sobreviver chafurdados nos espaços dominados pelo crack e/ou álcool. Entre afortunados há também os insignificantes que nadam de braçada numa vida sem propósitos e valores definidos.

Em Sorocaba pode haver 660 mil estórias não contadas. De gente que estuda, trabalha, ama, ora ou reza. Cheia de dúvidas ou certezas. Cidadãos que sacolejam no transporte coletivo ou parecem flutuar em carros de luxo. Uns andam de táxi, outros de uber. Quem ensina ou aprende. Gente que some e gente que reaparece. Sonha com a megassena ou se contenta com os caraminguás que fatura em seu trabalho. Para alguns, basta uma vitória do time de seu coração ou a derrota dos rivais. Os que se aglomeram nos restaurantes de luxo em contraponto aos que se alimentam de comida por quilo, ambos acima dos que se restauram com as marmitas da caridade. Sem esquecer os que se arriscam para nos dar segurança, ou aqueles cuja proximidade nos gera insegurança.

Na agitada Sorocaba de hoje, em meio aos espigões que se levantam, há obras que pretendem melhorar a mobilidade pública, novos centros comerciais que se instalam ou mudam de perfil. Nas casas do Executivo ou do Legislativo, acirradas lutas na disputa pelo poder. Nas congestionadas ruas, pedintes e vendedores multiplicam-se nos semáforos. Quase expulsaram artistas e malabares. O medo ronda as noites vazias da praça central. Tudo parece impedir a existência de poesia e poetas.

Mas eles estão por aí. Explícitos naquele senhor que ganha uns trocados oferecendo seus poemas ingênuos nas esquinas. Escondidos em projetos das bibliotecas Infantil e Jorge Guilherme Senger e Sesc. Incorporados pelas fundações Ubaldino Amaral e Luiz Almeida Marins Filho, ou nos institutos Defenda Sorocaba e Histórico Geográfico e Genealógico de Sorocaba. Sonhados no Museu do Tropeiro, Gabinete de Leitura e Academia Sorocabana de Letras. Reativados na releitura do palaciano Sorocaba Clube. Quimérico e ambicioso -- defenso de lucros pessoais -- a nos religar a Capital pela velha Sorocabana.

Existem muitos outros que este escriba desconhece ou deles não se lembrou. Sem mencionar as quase 700 mil estórias e histórias guardadas nos corações que habitam a Terra Rasgada. Pura poesia a espera de quem as traduza em versos e rimas.

(*) C. do Sul - 31/01/2020 - pág.15

Sorocaba, 1ª semana de março, 2020

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: edgard.steffen@gmail.com