Confira a crônica desta sexta: "Então o policial chega..."

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crônica 2

Então o policial chega pra ele e diz: pelo que o senhor disse, vossa senhoria não tem nada a ver com o crime do bar. Isso doutor, eu tava lá na hora que disseram que houve um crime. Nem sei se houve crime. Eu só vi um cara estirado lá. Bom, continuou o policial, então o senhor presenciou a morte. Olha, senhor, vou dizer de novo, eu não sei se houve crime. Sei que estava lá no bar quando o cara apareceu ensanguentado no chão.

Ai, ai, ai, ai, ai, o senhor está de gozação comigo, certo? Não, de jeito nenhum o que é isso. Eu? Não. Só estou dizendo que eu não vi crime nenhum. O fato de estar lá no bar não significa que eu vi. Como já expliquei pro senhor, o homem tava caído no meio de uma poça de sangue. Mas, como eu tava tomando minha cervejinha nem me liguei. Afinal, não era comigo mesmo o negócio.

Escuta aqui criatura, vai me tirar de idiota? Quer dizer que o senhor está num bar, tomando sua cervejinha, uma pessoa aparece caída, cheia de sangue, como o senhor mesmo diz e ainda afirma que não sabe de nada? Isso. Exatamente. Achei até que ele tinha tido, sei lá, uma hemorragia, tivesse vomitado sangue em si mesmo. O senhor sabe, quem tem úlcera pode ter dessas coisas.

Meu irmão, não tem úlcera nem meia úlcera, o dito cujo tinha uma baita faca espetada na barriga que ia até o cabo. Também não reparou nisso, certo?

Faca? Olha senhor, não vi faca nenhuma e nem sabia que ele tinha sido atingido na barriga. Como eu disse, tava na minha breja gelada e só. Só dei uma espiadela, ali do banco do balcão mesmo e, de longe, vi o que falei pro senhor. Um cara caído, numa poça de sangue, não se mexia e todo mundo correndo pra chamar a polícia.

Certo. Muito bem, todo mundo se movimentou pra ir chamar os tiras e o senhor continuou na degustação da sua cerveja gelada. Isso mesmo, doutor. Isso.

E como o senhor explica essa sua camisa cheia de sangue. Tem sangue ainda até no seu braço. Cortou a mão na faca que usou pra matar o infeliz?

Sangue? Ah, esse sangue aqui? É que alguém lá durante a briga, que acho que teve, porque também não lembro direito, atirou um copo de longe que quebrou quando tentei segurar pra não ir direto pra minha cara. E aí cortou a mão e saiu sangue que tentei limpar enxugando com minha camisa.

Ah, é? Atiraram um copo de longe. O copo chegou exatamente no senhor e machucou seu braço. Exatamente, senhor, exatamente isso. E, foi nesse quiproquó que acho que, talvez, como o senhor disse, esse cara tenha sido esfaqueado como o senhor também falou, porque, repito, não vi, não sei, não tenho ideia de assassinato nenhum. E, por falar nisso, como já contei o que sabia, posso ir embora?

Não. Ainda não terminei, disse o tira.

Olha doutor, sério, eu nem me mexi no meu canto porque sabia que o treco não era comigo então nem tinha porque sair, correr, ir embora. Fiquei pra ver o que ia dar aquilo ali. Se vinha ambulância pra levar o cara com a úlcera estourada, se vinha camburão pra levar o defunto. Fiquei na minha.

Muito bem, espertinho, falou o policial. E as testemunhas? Que testemunhas o senhor está falando? As que viram o senhor empunhar uma faca que pegou ali mesmo no bar e matar o sujeito com uma estocada só. Eu? De onde esse pessoal tirou isso? Mentira. Eu nem conhecia o sujeito. Nunca vi na minha vida. E não sei de faca nenhuma. Depois de umas três cervejas é certo que tava meio alto. Mas ainda consciente. E, não me lembro de ter enfiado a faca em ninguém.

Ah, certo, então não se lembra. E, por não se lembrar não fez. É isso?

Perfeitamente. Não fiz, não sei quem fez e, não me interessa saber e, se soubesse também não ia ficar dando de dedo duro aqui, certo? Sendo assim, posso ir embora?

Não, ainda não é hora de ir embora. O que o senhor está é pagando de idiota aqui comigo porque acha que sou trouxa. Se as testemunhas não servem pra comprovar sua culpa, deixa eu lhe mostrar uma coisa. Tá vendo isso aqui? É uma fita de vídeo lá do bar. E, nesta fita, adivinha quem aparece matando o sujeito? Olha, senhor policial, pra dizer a verdade, não tenho a menor ideia. Então, vou lhe mostrar, afirmou o delegado. Ao se ver em luta corporal com o futuro morto e matando o sujeito com uma facada só o acusado ainda balbuciou: Tem certeza que sou eu? Não tá parecendo comigo... acho que tá parecendo....

Não tem mais nem meio parecendo. Tá preso por assassinato. E chega de me fazer perder tempo.

Ao se virar para receber as algemas o acusado, repentinamente entrou em lógica e discursou: O senhor sabe não é doutor que, pela Sumula Vinculante numero onze não é lícito usar algemas. Só se eu resistisse à prisão, mostrasse que tava a fim de dar fuga ou ainda estivesse pondo em perigo a sua integridade física ou de alguém aqui. Saiba que vou pedir pro meu advogado que processe o senhor por responsabilidade disciplinar civil e penal. E mais ainda: vou pedir perícia nessa fita de vídeo e degravação para que se comprove que, de fato, sou eu aí. Não é porque parece comigo e tá com a mesma roupa que tou usando que se pode dizer que sou eu ou fui eu. Afinal, todo mundo sabe que fitas gravadas nem sempre correspondem à realidade... tem montagens e truques que podem até me colocar aí nessa cena mas que, de fato não sou eu quem está ai..

Vamos andando, encerrou a conversa, o policial.

Neusa Gatto é jornalista, produtora de tv e conteúdo.