Contra indigestões, uma política antropofágica

Por

Míriam Cris Carlos com Isabella Pichiguelli

Diante do abjeto, do nauseante ou do hediondo, do que embrulha o estômago, ofende, ou ainda diante do que nos é somente estranho e, por isso, causa rejeição, tendemos sempre a duas reações: optamos pelo afastamento, silenciamento ou esquecimento, ainda que forjados, como se não pudéssemos ver ou enxergar o que nos interpela à frente; ou escolhemos o caminho do enfrentamento, do protesto e da constante oposição àquilo que nos incomoda, sem nos darmos conta de que em toda disposição de luta (lembremos dos ringues), há certo processo de espelhamento entre os que se colocam como oponentes.

Diariamente, tomamos atitudes como essas na vivência de nossos traumas, desprezos ou desafetos, que podem ser de ordem pessoal, pelos motivos mais íntimos, mas também podem demonstrar nosso posicionamento no mundo, em sociedade.

Quando calamos e fugimos de certos temas ou pessoas, ao contrário do apagamento desejado, muitas vezes o que se colhe é o agigantamento dos problemas ou fantasmas, que voltam à tona implacavelmente. É necessário dizer que nos vinculamos ao outro não apenas pela simpatia, pelo amor ou pela identificação, mas também pela antipatia, pelo ódio e pela diferença que ele aparentemente representa. Já quando disputamos, no campo das vozes, pelo poder de mando ou de convencimento, corremos o inevitável risco de, simplesmente, perder (e perder inclusive a capacidade de ouvir).

Oswald de Andrade, poeta e teórico-crítico da cultura brasileira, ao tomar distância do Brasil, em suas viagens à Europa, pensa o país sob a ótica metafórica da antropofagia. Somos -- ou deveríamos ser, em tese -- uma cultura antropofágica. O antropófago é aquele capaz de reconhecer no inimigo suas qualidades, devorando-as. A antropofagia cultural, para Oswald, consiste em um processo de abertura para o outro, observando suas qualidades, a fim de digeri-las criticamente, para a transformação do outro, que não será mais o mesmo ao ser devorado, e, também para a mudança daquele que devorou.

Oswald de Andrade retorna à antropofagia em “A crise da Filosofia Messiânica” (1945), depois de tê-la considerado doença infantil, um “sarampão” (ironicamente para nossos dias), assumindo uma militância política mais formal. A retomada antropófaga se dá ao romper com o ideal de Estado enquanto organizador social. Contra dogmatismos, Oswald resgata a célebre frase do Manifesto Antropófago (1928): transformar o tabu em totem, que significa converter em valor favorável o que se apresenta como valor oposto.

Em tempos de polarizações radicais, pensar com Oswald de Andrade nos auxilia a compreender que de nada adianta tentar opor-se completamente àquele que pensa e age diferente, tampouco tentar ignorá-lo ou esquecê-lo. A postura política mais contundente, quando há gritaria entre dois lados que se opõem, está na tentativa da aproximação pela escuta, na busca da compreensão para tentar o diálogo, o que não é uma tarefa fácil.

Muitos adultos sofrem de um distúrbio conhecido como paladar infantil. Em resumo, isso significa uma dieta limitada, na qual são escolhidos alimentos com pouca diversidade de textura ou cor. São adultos que, ao se alimentarem, não toleram o novo, o desconhecido, a variedade, a multiplicidade.

Que possamos ter estômagos preparados para experimentar o novo. Só no contato com as diferenças é que conseguimos uma maior compreensão da realidade, inclusive daquela abjeta, da qual discordamos. Devorar a diferença, por meio da escuta atenta e da tentativa de diálogo, é talvez a única forma de transformar aquilo de que divergimos.

Míriam Cris Carlos é professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Colíder do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Nami). É autora dos livros “Comunicação e Cultura Antropofágicas” (2007) e de “A pele palpável da palavra” (2009). E-mail: miriamcriscarlos@gmail.com

Isabella Pichiguelli é doutoranda e mestra em Comunicação e Cultura pela Uniso. Integra o Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Nami) e o Grupo de Estudos em Mídia, Religião e Cultura (Mire). É autora do livro “Para além do gospel e secular: antropofagia, jornalismo e a popstora Baby do Brasil”. E-mail: isabellareisps@gmail.com