Correndo atrás do vento
Edgard Steffen
... tudo o que é feito debaixo do sol;
tudo é inútil, é correr atrás do vento!
Eclesiastes 1:14
Quando Manuel Garcia, do alto de sua prestigiosa página enviou-me questionário, pensei que resultaria em foto e algumas frases pinçadas para ocupar um pedacinho da “Presença”. No domingo, abro o Cruzeiro e levo vaidoso susto. Lá estavam grandes fotos e ipsis litteris respostas à entrevista.
Por vaidade espicaçada / além de merecimentos / -- já que me dizem poeta -- / vou correr atrás dos ventos.
De conhecidos e desconhecidos, freira, brigadeiro, antigos clientes, vizinhos, amigos, parentes, médicos e companheiros choveram e-mails e cumprimentos. Do Rotary Clube de Sorocaba-Leste enternecedora homenagem durante reunião on-line.
O autor do Eclesiastes reputa a vaidade tão inútil quanto tentar segurar a ventania. Alerta aos propósitos do tempo. Tempo de abraçar e tempo de deixar de abraçar (Ecl.3:5). A Covid-19 impõe-nos afastamentos físicos mas não impede o tempo de agradecer. No aguardo da volta dos fraternais abraços, deixo este meu amplexo de gratidão ao Manuel Garcia e a todos os que me honraram com a leitura de parte de minha história, tenham ou não se manifestado.
Sobre as origens de minha vocação para a escrita, mencionei nunca faltarem livros à minha volta. Destaco a feliz coincidência em ter morado com minha avó (1941/42) e com meu tio Eduardo (1948/49) no sobrado de pedra em Salto (SP). Silas Steffen, seu filho, convocado para a FEB, teve a sorte da vitória aliada livrá-lo de partir para Itália. Chegou a embarcar em navio que voltou por causa dos submarinos. Durante sua convocação, usava o soldo para abastecer a casa com revistas e livros, cuidadosamente encadernados e guardados numa estante. Pré-adolescente, devorei revistas de contos policiais e a coleção das Seleções do Reader’s Digest. Adolescente, deliciei-me com a coleção de obras adquiridas segundo indicação do caderno de cultura de grande jornal diário. O acervo podia não ser tão grande, mas enorme sua qualidade. Estavam lá biografias de Lincoln, Bismark e Emile Zola. Obras políticas: “Minha Luta”, ao lado de “O Capital”, ambos tremendamente chatos que me fizeram desistir da leitura antes da página 100. Panfletários como Lizandro De La Torre (A Questão Social...) e Engels (Origem da Família, do Capital e Estado). Nietzsche, Schopenhauer, Voltaire, Maquiavel representando os filósofos. Clássicos como Dante e Cervantes. Romances sobre a vida nas minas de carvão, pelas tintas românticas de Richard Lewellin ou pela mão pesada do realismo de Zola. Novelas de A. J. Cronin e de Sommerset Maughan, ao lado do melhor de Dickens. “Caçadores de Micróbios”, de Paul de Kruif, e “O Livro de San Michele”, de Axel Münthe, ajudaram-me a colocar a medicina como objetivo almejado. A volumosa História Universal, de Will Durant, e o singelo “O Pequeno Príncipe”. Machado de Assis, Euclides da Cunha, Raul Pompeia, e outros que já não me vêm à memória, integravam a coleção.
Vivi num ambiente em que os mais velhos falavam alemão. Não aprendi o idioma. Talvez deva culpar a 2ª Grande Guerra e o Estado Novo, que o proibiu. Lembro-me de imigrante que veio trabalhar na construção da ponte que liga Salto a Itu (1949). Recém-chegado ao Brasil, muito pobre instalara-se, com mulher e filhos, num casarão construído para isolamento na epidemia de febre amarela e que também servira como lazareto. Nos domingos e feriados, vinha conversar com meu tio. Quando a professora de Português sugeriu participasse em concurso sobre o Natal, imaginei como seria o impacto da comemoração natalina em fugitivos do pós-guerra, vivendo num país cuja língua e costumes não entendiam.
Ganhei o segundo lugar. Nada mal para adolescente que imergiria no aprendizado da ciência e arte da Medicina. Voltaria à Literatura quando curvada a coluna, fraquejados braços e pernas, escurecidos olhos, prateados os cabelos e baixado o volume da voz. Como previstos em Eclesiastes 12.
Edgard Steffen é escritor e médico pediatra - E-mail: edgard.steffen@gmail.com