De angus e fubás

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Crédito da foto: Reprodução / Internet

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Edgard Steffen

Debaixo desse angu tem carne

(Sabedoria popular)

O verbete “fubá” significa farinha no idioma quimbundo. Na linguagem coloquial do português brasileiro, é farinha fina obtida pela moagem de grãos secos de milho. Com essa farinha os portugueses fizeram doces e bolos, enquanto os escravos enriqueceram a culinária pindorâmica com angus e mingaus. No século 19 italianos introduziram a polenta, quase tão apreciada e disseminada quanto a pizza.

Acredito venha dos indígenas a farinha de milho, mais grosseira e em flocos, obtida a partir de grãos macerados, esmagados, peneirados. Com duas versões, branca ou amarela, é ingrediente base de cuscuzes e farofas.

Papas de menor consistência -- feitas com alguma farinha ou cereal diluído e/ou cozido em leite ou água -- recebem o nome indígena de mingau (minga u, o que alguém empapa).

O nome angu também veio da África e significava papa. Com o tempo, o dinamismo semântico gerou a denominação angu para designar a de fubá enquanto pirão passou a nomear papa de farinha de mandioca. No Brasil, tanto uma como a outra, acompanhadas de miúdos de porco ou vaca, passaram a ser chamadas angu.

Enquanto a qualidade nutricional dos mingaus dependia do veículo (leite ou água) ou do cereal (aveia, quinoa, fubá, etc.), a parte nobre dos angus estava nas carnes e miúdos.

Muitos senhores alimentavam escravos com comida barata, porém calórica. Quase sempre angu de fubá. As escravas da cozinha davam um jeito em desviar pedaços de carne ou torresmo da refeição patronal, colocando os nacos no fundo da vasilha e cobrindo-os com a pasta: se não ficassem totalmente cobertos, formavam pelotes. Daí as expressões “debaixo do angu tem carne” e “angu de caroço” cunhadas nos tempos de escravidão e, posteriormente, adotadas pela sabedoria popular. As expressões indicam que alguém está escondendo alguma coisa ou intento. Angu de caroço também se usa para definir situação complicada, difícil de ser explicada. Talvez esteja ligada a episódios em que feitores descobriam a piedosa trapaça.

Esta digressão pelas curiosidades linguístico-culinárias foi despertada pelo falecimento do ex-jogador Gilmar Fubá, vítima de mieloma múltiplo (câncer na medula óssea). Gilmar de Lima Nascimento (1976 - 2021), volante raçudo e marcador implacável, teve seus dias de glória no Corinthians. Folclórico, colecionou amigos pelo sorriso franco e impagável jeito de contar histórias do mundo (e submundo) da bola. Ingênuo, atribuía seu porte e vigor físico às mamadeiras de mingau de fubá que tomou até a idade escolar. Na verdade sinal de pobreza.

Durante militância nos postos de puericultura, percebi comportamento padrão nas famílias cujos recursos eram insuficientes para aquisição de proteína animal (carne, leite, ovos) para seus rebentos. Compensavam a carência protéica pelo uso de hidratos de carbono calóricos e baratos. Cansei de lutar contra o uso de leite condensado diluído e farinhas acrescentadas às mamadeiras. Produziam crianças obesas, pelo excesso de calorias, e fracas, pela falta de substrato protéico.

O apelido “fubá” não pegou apenas no Gilmar. A culpa é do milho amarelo predominante na agricultura brasileira. Nosso cereal ostenta bela cor amarela tendendo para o laranja. Tenho um sobrinho, professor de educação física aposentado, ex-meiocampista amador de algum talento, também alcunhado “Fubá”. Neste caso, porque a ascendência alemã e portuguesa brindou-o com uma cabeleira de cor similar à farinha obtida pela moagem do milho. Pela mesma razão, conheço cidadão de grande e merecido respeito que carrega o apelido “Polenta” para os que o conheceram desde a infância.

Só para contextualizar a sabedoria popular... A condução errática e equivocada no enfrentamento da pandemia gerou monstruoso e assustador angu-de-caroço. Para piorar, algumas decisões na esfera dos três poderes trazem a sensação de que, por baixo desse angu, tem carne.

Edgard Steffen é escritor e médico pediatra. E-mail: edgard.steffen@gmail.com