Em nome do talento
Leandro Karnal
Aristóteles foi considerado a maior mente filosófica que já existiu. Por vezes, falavam dele apenas como o Filósofo, com letra maiúscula, significando que seu nome passara a ser o exemplo perfeito do que seria o intelecto superior. A cabeça privilegiada do professor de Alexandre Magno abarcou quase todos os setores do conhecimento humano. Não é possível falar de ética, retórica, metafísica, política e de outros conceitos nos últimos dois mil e 300 anos sem passar, no Ocidente, pelos textos dele. Graças a Tomás de Aquino e outros, talvez não seja possível sequer falar de Deus sem apelar a raciocínios do filho mais ilustre da cidade de Estagira.
Quase todo professor de História e de Filosofia já passou pela experiência de citar a opinião do Filósofo sobre escravidão. No Ensino Médio ou na Graduação, falamos que ele defendia a possibilidade de “escravos por natureza”. Mesmo elaborando algumas restrições (gregos não deveriam escravizar gregos, condenava abusos de autoridade sobre o escravo, a escravidão derivada da guerra era questionável, defendeu a emancipação, etc. ), Aristóteles diz que a antítese entre superior e inferior é encontrada em todos os lugares da natureza (corpo-alma, intelecto-apetite, homem-animal) e seria vantajoso para os dois lados mando de um sobre o outro. Diante de alunos escandalizados, sempre falamos do erro do anacronismo: julgar alguém do passado pelos nossos valores. Cobrar que o Filósofo tivesse outra ideia seria tão ilógico como apontar como defeito o desconhecimento de inglês por parte do pensador. Será?
Apesar de gestos e opiniões contraditórias, o grande escritor José de Alencar, em pleno século 19, indicava uma solução paternalista para a escravidão, algo destacado pela pesquisadora Dayana Façanha, da Unicamp (Política e Escravidão em José de Alencar, ed. Alameda). Uma emancipação sem indenização aos “donos” dos escravos seria, para o criador de Iracema, uma violência. Muitos indicaram que o político conservador e autor romântico não seria um escravagista ilimitado, todavia os recursos retóricos que Alencar utiliza para falar da escravidão o aproximam de alguns pontos da Política de Aristóteles, com a agravante de o cearense ter acesso a muitos e fortes argumentos contrários à prática no século 19.
Talento permite absolvição permanente? A ideia de anacronismo perdoa crimes de todos os tipos apenas porque estavam “em outra época”? Nosso extraordinário poeta Carlos Drummond de Andrade não parece ter encontrado graves obstáculos entre suas convicções políticas de esquerda e trabalhar para a ditadura do Estado Novo. Com o mesmo talento literário com que faria o revolucionário poema da “pedra no meio do caminho”, o mineiro serviu ao ministro Capanema durante o período mais fascista da Era Vargas. Carlos Drummond trabalhou com competência e esforço para o governo que prendeu Luiz Carlos Prestes e enviou a companheira do líder comunista para a morte. O mesmo poeta escreveria para a Tribuna Popular, jornal ligado ao Partido Comunista, quando a anistia trouxe os militantes para uma breve primavera legal. Deveríamos abandonar a leitura d’O Guarani de Alencar ou do poema E Agora, José? de Drummond por causa de incoerências ou por valores considerados estranhos ao nosso universo moral?
O que fazer com as opiniões misóginas de Nietzsche ou Schopenhauer no século 19? Como superar as referências politicamente incorretas de Monteiro Lobato? Como tratar o racismo declarado de Jorge Luis Borges? Muitos que apedrejam a memória de Borges perdoam a admiração de outro gênio por outro ditador: Gabriel García Márquez a Fidel Castro.
Avancemos. A pianista Valentina Lisitsa nasceu em Kiev, em 1973. Sua interpretação da famosa (e dificílima) sonata 29 para piano, de Beethoven, é algo que deve ser procurado na internet e ouvido com devoção. Apesar do local de nascimento, Valentina apoia a causa russa no debate com a Ucrânia pela ascendência da família. Ela fez postagens pró-russos nos atritos sérios entre os dois países. Em 2014, a linguagem dura que ela usou nas redes sociais foi considerada inapropriada por muitos. No ano seguinte, o concerto que estava marcado com a Orquestra de Toronto foi cancelado. O debate é sempre o mesmo: ela tinha sido contratada por ser pianista e não por ser especialista em conflitos do Leste Europeu. Houve quem dissesse que isso era cercear a liberdade de expressão e surgiram vozes afirmando que instituições nacionais como a orquestra canadense eram referência de ética e não poderiam defender uma “vista grossa” de que o talento apaga quaisquer infrações. O debate é interminável.
Israel fez restrições a Richard Wagner pelas odiosas opiniões antissemitas do músico, bem como pela adoção das suas óperas como parte da estética do movimento nazista. O regente e compositor Richard Strauss condenou o nazismo em privado e exerceu cargo musical durante o período de Hitler. Um tipo de Carlos Drummond de Andrade? Emprego e ideário político seriam caixas separadas no cérebro? São perguntas importantes. As respostas são complexas. Toda vez que um artista renomado aceita cargos em governos, o debate retorna. Felizes somos nós, que não temos cargos nem o talento dos gênios citados. Boa semana!
Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.