Filmes da Netflix: ’O poço’
Nildo Benedetti - nildo.maximo@hotmail.com
“O poço” pode ser discutido sob a perspectiva religiosa (muito rica), sociológica, psicológica etc.
Sociológica: Homens e mulheres de todas as raças e crenças são parte de uma hierarquia social fixada geograficamente a partir do norte para o sul e simbolizada pelo piso em que o indivíduo se encontra nessa grande prisão. É uma crítica ao capitalismo geral e neoliberal em particular, criado no hemisfério norte, que oferece as sobras ou nada aos que estão nos pisos inferiores e dá em excesso aos que estão nos pisos superiores, simbolizando a desigualdade dos dias atuais. A subida ou descida aos níveis é determinada por uma lógica incompreensível, que não depende de qualquer mérito, seja moral, seja de qualquer outra ordem. É como sucede com as heranças, em que o nascimento do indivíduo determinará seu acesso menor ou maior à riqueza, simbolizada pela comida. Ao mesmo tempo, o filme mostra a impossibilidade da implantação do socialismo numa sociedade assim estruturada, em que não têm lugar a compaixão e a tolerância. Imoguri apela à solidariedade humana para dividir a comida e não suporta o fracasso de sua utopia. Goreng -- agindo como o Don Quixote do livro que lê -- e Baharat tentam convencer pela força e pela morte os demais prisioneiros a dividir a comida e, com isso, acabam fazendo uma carnificina que é a parte mais violenta do filme.
Psicológica: Em vários textos, Freud refere-se à existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor, portanto, que ela esteja presente nos outros. Em consequência dessa mútua hostilidade dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração e é forçada a estabelecer limites para as pulsões agressivas do homem por vários meios: sublimação (mecanismo de defesa em que a agressividade se converte em atitudes socialmente aceitáveis, como prática de esportes etc.), opressão, repressão. Na sociedade representada pelo poço, nada impede a plena realização da agressividade, porque a sobrevivência em cada nível depende da força e da fraude, que Hobbes definiu como as virtudes cardeais na guerra de todos contra todos. Como não existe justiça, nada é injusto. Indivíduos com consciência ética, como Goreng e Imoguri, são tragados nessa guerra.
O final do filme: o diretor do filme afirma que Goreng já está morto no nível 333 e o que ocorre é o que ele gostaria que sucedesse. Portanto, a criança e os outros acontecimentos (panna cota etc.) não existiriam. Mas, a luz intensa que se projeta sobre a menina e Goreng lembra a luz que se projeta por trás do monólito que determina as fases de mudanças da humanidade no filme “2001”. Isto pode indicar que uma transformação social ocorrerá -- quer a imaginada por Goreng, quer a preconizada pelo filme -- , como entidade que emite opinião. Parece razoável supor que tal transformação seja direcionada a suprir o que falta à humanidade em termos de justiça e compaixão, falta que é amplamente demostrada no filme.
Mas, por que uma criança que não fala simboliza essa transformação? Isso deixo para o leitor responder.
Na próxima semana tratarei de “Assunto de família”.