Filmes da Netflix: ‘Viver duas vezes’

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Movido por uma ilusão, Emílio (Oscar Martinez) empreende a viagem que levará a filha Julia (Inma Cuesta) a se conscientizar da precariedade de seu casamento. Crédito da foto: Divulgação

Movido por uma ilusão, Emílio (Oscar Martinez) empreende a viagem que levará a filha Julia (Inma Cuesta) a se conscientizar da precariedade de seu casamento. Crédito da foto: Divulgação

Nildo Benedetti - nildo.maximo@hotmail.com

Este filme de 2019, de Maria Ripoll, nascida na Catalunha, Espanha, narra a história de Emílio, um professor de matemática universitário aposentado que passa a mostrar sintomas de perda de memória e recebe diagnóstico de doença de Alzheimer. Sua filha se reaproxima dele para tentar ajudá-lo. Com o passar do tempo, sua condição se deteriora e chega a ser incapaz de realizar operações matemáticas simples. Resolve então, antes de perder totalmente a memória, reencontrar a jovem Margarida que havia sido sua paixão de adolescente.

O relacionamento Emílio e Margarida adolescentes estava na fase da ilusão, da conquista, de idealização das virtudes da pessoa por quem estamos interessados. Freud nos dá uma explicação precisa desse comportamento, que vale para qualquer relação amorosa, mas pode ser mais facilmente verificada no início das relações afetivas. Nestas, o pouco conhecimento que uma parte tem da outra amplia a gama de características idealizadas. Ou seja, temos a ilusão de que nosso amor por alguém se deve apenas a seus méritos espirituais e sensuais; mas o que de fato ocorre é que idealizamos a pessoa que estamos amando, e nossa capacidade crítica sobre seus méritos e defeitos fica mascarada pela idealização, que procura atender às nossas próprias necessidades psíquicas. Alguns seres humanos amam pelo que imaginam que o outro possa ser, como queriam que ele fosse, aquela parte de si que projeta no outro, isto é, amam o que imaginam no outro. O amor, para ser considerado duradouro, deve sobreviver às duras atitudes do longo convívio, dos tropeços da vida, dos problemas nas relações com filhos, com as manias irritantes e com a velhice do outro.

No filme, as relações amorosas são protagonizadas por três gerações. A relação virtual de Blanca com o namorado é, de fato, totalmente idealizada, como foi a de Margarida com Emílio. Os relacionamentos da filha de Emílio com o marido e o do casal de idosos Angústias e Abundio pode muito bem espelhar no que poderia ter se convertido com o tempo a relação de Emílio e Margarida.

Para o encontro com Margarida, Emílio ele comporta como um adolescente que leva flores e se veste impecavelmente. É a tentativa de voltar um passado morto e totalmente ilusório. Mas sua viagem tem desdobramentos positivos. A filha se separa do marido, um “coach” conquistador desempregado e que se empenha, para ter alguma fonte de renda, a dar conselhos de autoajuda que mais irritam do que ajudam. A neta, Blanca, encontra em Emílio um avô paciente, compreensivo e comparsa. Mas, os maiores beneficiados são o próprio Emílio e Margarida. Ele pode, por meio da ilusão e da moléstia, desfrutar de um final de vida feliz. O mesmo se passa com Margarida que, ao que parece, passou a vida atrelada a uma paixão ilusória e continua bordando o sinal de infinito.

“Viver duas vezes” não é uma obra profunda sobre o amor de casais, como tratado em filmes como “História de um casamento”, disponível na Netflix, ou por diretores como Ingmar Bergman. Também trata de modo simplificado as conturbadas relações de pais e filhos. Mas é uma obra singela e sensível.

Na próxima semana escreverei sobre “Crimes de família”.

Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec