Mariposas
Leandro Karnal
Há mariposas ao redor de cada fonte brilhante na escuridão. Dizem que as borboletas noturnas derivam seu nome do espanhol: “Maria Pousa”. São atraídas para a luz por um fenômeno chamado fototaxia. As causas são controversas. Mudam seu voo em direção a ela e, por vezes, morrem se debatendo contra um vidro quente de uma luminária externa.
Haveria humanos assim? Talvez. José Dias é magro, já passado dos 50 anos. Anda lentamente. Quem o olha imagina que tem o passo dos preguiçosos. Erro! Move-se de forma calculada e deduzida. Se fosse um estudante de lógica, o caminhar dele seria um silogismo completo: a premissa antes da consequência, a consequência antes da conclusão.
Ele é comum e pretensioso. Usa muitos superlativos. “Era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo, servia a prolongar as frases.” Estou descrevendo e usando as tintas de Machado para a personagem do “agregado” da família de Bentinho. Sabemos: o autor é genial na descrição da fauna da nossa espécie O tipo de José Dias, com gramáticas variadas, vagava pela Corte no século 19 e é filmado no Big Brother até hoje. Sabe-se observado e depende da boa vontade das pessoas ao redor para continuar ali. Age para o público. Busca a luz, apesar de ser alguém das sombras. Depende do holofote (e da comida) de outrem
José Dias não é mau. Mentiu ao se anunciar médico homeopata. Se eliminarmos quem já mentiu no mundo, provavelmente a Terra será devolvida aos animais como no quinto dia da criação: sem pessoas. Era um “agregado”, algo que um romano antigo chamaria de cliente.
Fazia pequenos serviços, elogiava a dona da casa, ajudava de quando em vez, orientava com conselhos, advertia sobre os riscos da vizinha Capitu. A grande questão é que, sendo dependente, não tinha autonomia moral para agir fora do esquadro. Também, querendo ser beneficiado com a hipótese de Bentinho ir para a Europa estudar, estimulava essa opção.
Seria venal? Eu creio apenas humano, misturando sabedoria a interesses pessoais. Agia como quase todos agimos. Não aconselhava algo para a ruína do filho único; orientava de tal forma que ambos fossem beneficiados.
Após uma vida com a família, o homem dos superlativos faleceu. A cena tem pinceladas de intimidade e de alguma emoção. O narrador, o próprio Dom Casmurro, diz sobre os minutos finais: “Abrimos a janela. Realmente, estava um céu azul e claro. José Dias soergueu-se e olhou para fora; após alguns instantes, deixou cair a cabeça, murmurando: Lindíssimo! Foi a última palavra que proferiu neste mundo. Pobre José Dias! Por que hei de negar que chorei por ele?”.
Redime-se parte da personagem pelo final. Causou lágrimas. Elaborou certa poesia ao contemplar o firmamento. Seu último superlativo era um louvor à Natureza. Sim, aumentava as palavras porque tinha poucas ideias. Seria como o pregador que berra porque o argumento é fraco. Baseado no latim, o chamado superlativo “absoluto sintético” é ainda mais impressionante.
Livre em grau máximo? Libérrimo. Algo muito comum? Contumacíssimo. Busca a fama a qualquer custo? Anseia por se tornar celebérrimo. Crescem as palavras no deserto da criatividade.
A boa literatura é um exercício duplo interno. Por um lado, vemos personagens que ilustram as possibilidades dos seres humanos. São exemplos ficcionais de pensamentos concretos e existentes no mundo real. José Dias personifica a subserviência do agregado. Iago encarna as maquinações da inveja rancorosa, como Otelo, a obsessão dos ciúmes.
Os riscos da avareza demasiada? Shylock (O Mercador de Veneza, Shakespeare), Harpagon (O Avarento, Molière) e Ebenezer Scrooge (Um Conto de Natal, Dickens) mostram muitas possibilidades. Quem nunca encontrou um Conselheiro Acácio (O Primo Basílio, de Eça) com sua pompa extrema e conhecimento raso? Citador de frases perdidas, de vida moral duvidosa, porém amante da glória do mundo?
Em Herman Melville, eu descobri que o risco de uma ideia fixa pode levar ao fim, como o capitão Ahab. No mesmo autor, uma das figuras mais surpreendentes na sua excêntrica mediocridade: o escriturário Bartleby.
O outro aspecto positivo da boa literatura é nosso transporte empático para as dores das personagens e das suas experiências. Acho um exercício muito bom eu ser capaz de sentir a angústia de Fantine n’Os Miseráveis (Victor Hugo). Paixão cega? O casal Simão e Teresa (Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco) é uma advertência ainda mais forte do que Romeu e Julieta. Com mais talento e carisma do que Bartleby, amei a datilógrafa Macabéa (A Hora da Estrela, Clarice Lispector).
Tendo vivido as angústias e alegrias de personagens variadas, na literatura e no cinema, exercitei a identidade, a compaixão, a diversidade e a capacidade empática. Alguém pode me dizer: mas você é tão racional e até distante, Leandro. Bem, um pouco menos do que pareço, porém, imagine se eu não tivesse feito o exercício de amálgama e transposição com o limite da ficção e do real?
Em resumo, querida leitora e estimado leitor: concluo que somos todos José Dias. Meu único consolo? Quero me movimentar como mariposa hipnotizada, ao redor de boa luz.
Os grandes livros são lumes fortes e perenes. Imerso na banalidade cotidiana, espero, ao menos, que eu possa me debater no lampião de Machado e de Clarice... Como Goethe, ao terminar tudo, gritarei por “mais luz”! Boa semana para borboletas felizes, lagartas famintas e mariposas iludidas.
Leandro Karnal é historiador e escritor, autor de ‘O Dilema do Porco-Espinho’, entre outros