O Filho do Homem

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Crédito da foto: Pixabay

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Leandro Karnal

François Mauriac (1885-1970) foi um escritor francês membro da Academia e laureado com o Prêmio Nobel. Sua obra é profundamente psicológica e trata de almas atormentadas, como talvez o próprio Mauriac tenha sido. Foi anticomunista ferrenho, gaullista, religioso e dono de um estilo que recebeu elogios de pessoas muito distintas no espectro político. Thérèse Desqueyroux, de 1927, um aclamado romance de um crime levado adiante por uma mulher, foi levado ao cinema duas vezes e, felizmente, foi vertido para o português por Carlos Drummond de Andrade. Críticos franceses consideraram a história uma das maiores obras do século 20 na língua de Molière.

O público brasileiro tem, agora, chance de reencontrar outra obra de Mauriac: O Filho do Homem. Com tradução de Teresa de Araújo Penna e prefácio de Mariana Ianelli, a Nova Fronteira coloca, em capa dura, uma instigante imagem de um Cristo abençoando, obra de Hans Memling (século 15). O livro é dedicado a Elias Wiesel, célebre testemunha dos horrores do Holocausto. É um texto da maturidade final de Mauriac e ainda dialoga com seu estilo único contido em Thérèse Desqueyroux. Inevitavelmente, o livro traduzido por Drummond, anterior à guerra, ao Holocausto e aos problemas da descolonização, difere muito de O Filho do Homem, publicado originalmente pouco anos depois de todos esses eventos funestos. Em parte, o Mauriac do pós-guerra, no livro agora publicado, traz um pouco do questionamento axial da segunda metade do século 20: como continuar sendo religioso e encontrar o Deus de Amor em meio aos horrores indescritíveis da experiência humana de genocídios e guerras? O texto inicial é do dominicano no século 19, Lacordaire, e traz um pouco da mesma preocupação. O ser humano, dilacerado pelo real desastroso e pungente, olha para a cruz e tenta estabelecer um contato com a dor de Jesus, Filho do Homem e homem-guia. Como escreveu o frade, “Tudo está acabado, acabado para sempre, e essa é a história do homem no amor”.

O início do texto de Mauriac é fascinante. Ele volta à infância e relembra do Deus da Primeira Comunhão na mesma capela que o homem adulto, hoje, contempla toda sua experiência e fé. Como o “Deus-Menino” do presépio dialogou com o autor-menino na memória e no ciclo da vida de experiências amargas na França? Ele perpassa a manjedoura e o Gólgota: “O infinito se abisma em um finito urdido de crimes: fixa-se aí por dois pedaços de madeira cruzados que, por sua vez e algozes, acenderão fogueiras, desencadearão cruzadas, guerras estrangeiras e civis, acorrentarão destinos a leis desumanas. Este ser tão meigo, tremente de frio à beira dum mundo criminoso, enquanto os anjos prometem aos homens de boa vontade uma paz que só começa a ver depois de um cúmulo de angústia...”. Falaria ele de Jesus, da história do Cristianismo ou de si nesta passagem? Esta é parte da chave mágica do texto de Mauriac, o autor que Carlos Drummond dizia ser capaz de “penetrar, com um mergulho instantâneo, na superfície espessa da consciência”.

O resto do texto é uma espécie de biografia de Jesus iluminada por passagens significativas. É mais cristã do que católica, ainda que ele enfatize a presença real de Deus na hóstia. Acompanhamos um Messias muito humano, lidando com outros seres humanos. O olhar da compaixão e da misericórdia surge em meio à dor, à dúvida e, acima de tudo, à falha permanente dos descendentes de Adão e de Eva. Nem o mais atrevido advogado de acusação encontraria base para acusar o texto de duas heresias: arianismo e pelagianismo. Não obstante, o Filho do Homem é tão humano na pena de Mauriac que quase deixa de ser a segunda Pessoa da Trindade. Da mesma forma, os humanos são tão toscos, em geral, que quase incapazes de receber a salvação a não ser por dom e graça de Deus. Negar a Trindade e considerar o humano destituído de arbítrio são, em suma, os eixos arianos e pelagianos. Mauriac é ortodoxo, ajoelhado em contemplação da hóstia no ostensório, porém, permite-se uma olhada para a porta externa do mundo e, como muitos de sua geração, perdeu um pouco da crença na liberdade humana como geradora de paz.

Li o livro pensando n’A Monstruosidade De Cristo, o debate do cético iek e do crente Milbank (editora Três Estrelas). Um deus de carne em um estábulo ou sofrendo em agonia na Cruz é, sempre, um escândalo para os monoteísmos mais metafísicos. O risco da crença na Encarnação é a proximidade dos semideuses pagãos: após muito sofrimento, são reintegrados a sua natureza divina. O prêmio da mesma convicção é a história de todo o Cristianismo: um Filho do Homem com um olhar terno para a humanidade, mesmo após Auschwitz. Theodor Adorno considerou que era barbárie escrever poesia após os horrores daquele centro de morte e de maldade absolutas. François Mauriac traduz a fé daqueles que acham que Jesus está presente, inclusive, em meio ao pecado maior e à dor inenarrável. O texto é ótimo para uma época que só pensa em um Deus que protege sempre e impede que seus filhos tenham problemas. Eis a grande lição da Cruz e não o que lemos em certa Teologia da Prosperidade. Boa semana para todos nós, leitores e pecadores.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.