O incrível furto do ventilador valioso
Uma nota chamou atenção no noticiário local: um homem furtou um ventilador da recém-inaugurada Pinacoteca de Sorocaba esta semana. O crime teria ocorrido durante à noite por volta das 22h e descoberto pela GCM (Guarda Civil Municipal). Os policiais viram um suspeito nas proximidades da Pinacoteca carregando um marmitex, que se revelou mais tarde ser o ladrão do ventilador, não o marmitex, o suspeito.
O interessante é que a Pinacoteca recém-inaugurada contém aproximadamente 60 peças do Arquivo Público Histórico Municipal.
As obras no interior do Chalé Francês, que abriga a Pinacoteca, têm valor no mercado de arte e, possivelmente, seriam do interesse de ladrões especializados em furtos como tem sido frequente nos museus.
No entanto nosso gatuno furtou um ventilador, enquanto levava um marmitex que, para deleite do leitor, figura quase como um elemento de identificação. Sujeito alto, cabelos castanhos, barba rala e portando um marmitex. A foto clássica de frente e perfil com data e número permitiria identificar a ambos, sujeito e marmitex? Foi preso.
Há mais de 50 anos no bairro da Árvore Grande havia um armazém da Cobal (Companhia Brasileira de Alimento, 1962), que vendia gêneros alimentícios a preços populares. Numa determinada noite foi invadido por ladrões que logo foram descobertos e presos, a maioria deles era de moradores do bairro; no entanto um foi libertado quase de imediato, tratava-se de um índio, figura pitoresca, de altura mediana, cabelos negros cortados em franja, rosto vincado, que andava descalço e manquitolando pelo bairro, possivelmente de origem mato-grossense, falava mal o português. Quando a polícia chegou ao seu casebre encontrou sacos de arroz, linguiças, salames, leite e tudo que poderia ser comido. Boa parte ele começou a usufruir no próprio local, estraçalhando linguiças e pedaços de pão sem piedade, como peritos puderam concluir vendo os restos mortais de uma calabresa, só reconhecida no IML graças a etiqueta e carimbo do S.I.F. Nenhum familiar reclamou os restos do embutido, como dos demais alimentos. É de se imaginar as provas do furto diante do delegado, autoridade máxima à época, averiguando um toucinho e em dúvida se pedir exame de corpo de delito ou colocar na frigideira. Eram tempos difíceis, sem porte de arma e nem marmitex para ameaçar. Enquanto os “comparsas” procuravam por dinheiro e objetos de valor, o índio cujo nome se perdeu no tempo, procurava o que comer. Como é próprio dos que sofrem de estômago vazio e são de alta periculosidade, foi libertado sob a singela alegação de: fome.
Retornando ao nosso gatuno atual, se estivessem a Monalisa (Da Vinci,1502), ou O Grito (Edvard Much, 1895), ou Les Femmes d’Alger (Pablo Picasso, 1995), para ficar em algumas das mais valiosas obras do mundo, na nossa Pinacoteca local -- que nada deve às grandes galerias e museus -- e se ao lado dessas obras-primas houvesse um aparelho de ar-condicionado, é possível que nosso ladrão arrancasse o aparelho sem dó nem piedade da moldura na parede, imaginando que agora sim iria poder dormir à noite toda sem ficar se virando e empapando o lençol de suor, nem se abanando em vão com uma folha de jornal ou caderno, não sem antes cuidar de bater um rango de seu marmitex, de certo tão valioso quanto o aparelho, enquanto se refrescava do calor.
O cantor e compositor Gilberto Gil, juntamente com Os Paralamas do Sucesso, gravou em 2003 a música “A novidade”, um dilema filosófico que se aplica aos nossos casos domésticos, com a vantagem de ter uma belíssima melodia. Nessa letra os poetas dizem:
A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
Metade, o busto de uma deusa maia
Metade, um grande rabo de baleia
A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia
Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total.
Nos versos, os autores nos colocam diante do paradoxo entre aqueles que veem na sereia uma deusa e outros que veem um bom peixe para a ceia. Isso pode dar a medida do que é importante ou valor para cada ser humano e o quanto é relativa a cultura, a beleza, os bens, que servem tão somente ao propósito de cada um e suas próprias medidas em algum momento.
Nos hospitais públicos da nossa região, doentes que lutam pela vida, possivelmente ficariam felizes em olhar belas obras de arte, mas com certeza um ar-condicionado, um ambiente climatizado, seria suficiente para considerar arte e beleza aquilo que traz conforto e minimiza o sofrimento.
Nunca vi um só disco voador até hoje, já alienígenas...
José Feliciano - Redator, roteirista de humor e mistério. Médico de ventos e moinhos.