O jogral e a hetera

Por

Cládis Sanches Lopes

Em nossas andanças por este grande Brasil, quando ainda auditor no Banco do Brasil, lá pelas bandas de Caruaru (PE), num final de semana, estávamos curtindo a tranquilidade de pequena praça, daquelas que, ainda têm coreto, quando, ao nosso lado, sentou um cidadão, do tipo caboclo, mas dado a leitura, segundo ele nos afirmou.

De imediato, iniciou conversa sobre não sermos da região, e em seguida, tentou adivinhar de onde seríamos, rotulando-nos de gaúcho, já que tinha certeza que éramos sulista, quer pelo nosso sotaque, quer pela nossa brancura, bem diferente dos da região.

Esclarecidas as nossas origens e satisfeito com o porquê de estarmos naquelas paragens, visitando a agência do Banco do Brasil, inclinou-se enaltecer não só o banco, como o seu quadro de funcionário, quando, então, ele nos confidenciou o seu gosto afinado pela leitura.

Em dado momento, disse-nos ele que sentia, atualmente, grande dificuldade nas leituras de jornais e revistas, dada a importação de neologismos que, em muito, descaracteriza a nossa língua e, com elevado esforço, declinou-nos diversas palavras, cujos sentidos e/ou traduções exigia a presença de um dicionário e concatenou-nos, entre outras, as seguintes: “lofts”, “closet”, “single”, “double”, “sight ou site”, quando se referiu à leitura sobre apartamentos à venda.

Identicamente, ao saber que éramos advogados, colocou-nos o tema do palavreado próprio utilizado por nós outros causídicos e, em especial, pelo magistrado e tribunais, quando sentencia e formulam seus acórdãos, cujo teor da decisão, em alguns casos, necessita, também, da presença do dicionário, considerada a sofisticação dos termos utilizados.

Declinou-nos, assim, alguns desses termos, entre os quais se destacam: prolação, exegese, instar, assestar, idiosincrasia, estupefaciente, delenda, inveraz, aranzel, etc.

Afirmou, com convicção, que a existência desse palavreado, no bojo da decisão, tornava-se-lhe difícil entendê-la, embora se considerasse, relativamente, letrado; que dizer doutros não afeitos à leitura, aduzira. Tentamos explicar-lhe a quem se destinam as decisões judiciais; em vão. Ele se considerava, também, um destinatário e como tal afirmava que deveria entendê-la, sem muito sacrifício e sem a presença do dicionário.

Em dado momento, culpou a classe dos advogados por esse sofisticado palavreado, já que, segundo ele, são eles que fornecem elementos e subsídios aos magistrados, para as suas decisões. Ficamos abismados, quando ele nos pediu permissão para fazer citação, dizendo: “O advogado deve sugerir por forma tão discreta os argumentos que lhe dão razão, que deixe o juiz na convicção de que foi ele quem os descobriu.” (sic).

Afirmou-nos ele que essa afirmação é da lavra do eminente mestre e doutrinador Calamandrei, e que, por força dela, se adotada pelo advogado, a decisão teria conteúdo bem mais ameno, sem deixar de ser robusto. Não nos tornou fácil demovê-lo desse seu posicionamento. Fizemos vê-lo das limitações dos advogados, quando do exercício do seu “munus”, eis que deverão se ater, necessariamente, a tudo o que consta nos autos processo, sendo-lhes defeso criar situações inexistentes.

Novamente, em vão. Demonstrando deter boa leitura, disse-nos: “O advogado tem de ser cuidadoso, ético, legal, respeitador à lei e aos bons costumes, para que o funeral não tenha a putrefação das negociatas espúrias e que a rigidez cadavérica não seja substituída pela plasticidade das espinhas que se dobram, em postura desnuda de quatro.” (sic). Pense sobre isso, acrescentou-nos: até hoje estamos meditando, realmente, sobre isso.

Ao se despedir, contou-nos pequena estória que, segundo ele, urgida dentro do vernáculo, sem, portanto, qualquer neologismo, torna-se-nos bem mais fácil entendê-la, sem a necessidade de irmos ao dicionário: “O Jogral e a Hetera. Um jogral, querido por todos, vivia em sua simplicidade, na placidez de pequena cidade do interior. Jalofo por natureza, sem jorna e sem mais nada, servia de distração aos habitantes do lugar. Certo dia, surge na localidade bela hetera, risonha e atraente que, por brincadeira, dizia estar apaixonada pelo jogral, apesar de sua inópia já de todos conhecida. Quando menos se esperava, eis que aparece, também, pouco depois, desejando conhecer a modesta cidade, jovem hialotécnico, rapaz harto e elegante e que se dizia cheio de jimbo, mas de hábitos insuetos e que além do mais, fazia uso da jurubita. Apaixona-se logo por hetera. Mas, sabendo que ela havia anunciado gostar do jogral, jalofo sem inópia, resolve castigá-lo, munindo-se de sua habena com a qual ameaçava puni-lo, severamente. Porém, ante a tremenda reação do povo, toma o seu corcel, uma bela alimária isabel, e desaparece para sempre.” (sic).

O cidadão, em seguida, despediu-se e foi embora. Nem ao menos seu nome soubemos.

É, então, de se questionar: quantos de nós temos de ir ao dicionário para entender essa estória, sem qualquer neologismo? Realmente, nosso idioma é maravilhoso e simples.

Cládis Sanches Lopes é escritor, advogado e professor universitário.