‘O mia pátria, sì bella e perduta!’
Leandro Karnal
Faço o título da coluna na língua que não falo. A beleza do italiano é que ele parece ainda mais forte e poético para os que não o dominam. O mais fascinante, nas muitas vezes em que estive na Itália, é que os que não falam são tão atraídos pela cadência da península que se comunicam bem no idioma que não dominam. Para outra língua neolatina como o português, de alguma forma e com boa vontade, o sentido de “buon giorno!” ou um desejo ao sair do hotel de “buon viaggio!” parecem soar naturais. Claro, a língua de Dante é muito mais complexa fora da recepção. Porém, quem vai para Florença não se pega recitando a Divina Comédia, todavia, ao chegar o prato, comenta como se fosse fluente: “La bella polenta”! Se o topo da montanha, a obra de Dante, é complicado, a base do vale também. As expressões cotidianas humilham turistas pseudofluentes. Tudo vai bem até que o falante usa coloquialismos como “Piove sul bagnato” que significa o reforço de algo já ruim, algo como “mais do mesmo” no vernáculo de Camões. A tradução “chover no molhado” é correta, mas não contempla o mesmo sentido, pois em português quer dizer “óbvio ou redundante” e, em italiano, a continuidade de um processo negativo. Fulano é incapaz de guardar um segredo? Na terra da culinária mais popular do mundo, ele não consegue guardar um grão-de-bico na boca: “Non sei capace di tenerti un cece in bocca”.
Para você mulher que está triste ou carente, a Itália é o seu destino. Os italianos lançam palavras sedutoras sobre as mulheres por serem mulheres. “Che bella donna!” é frase obrigatória para um ser que o italiano reconheça como mulher e, por consequência, bela. “Belladonna” não é substantivo, mas adjetivo. É mulher em si. Segundo uma amiga brasileira, até o assaltante na noite de Roma lança um elogio à assaltada. É etiqueta. Instintivo. Obrigatório. O rapaz está andando rápido na sua “motorino”, veste pantaloni salmão apertados na canela, écharpe rosa e cabelo ondulante ao vento? Não se engane, ele lançará um olhar que equivale a quilos de lítio. Claro, sabemos que toda mulher é autônoma, livre, independente e empoderada e jamais necessita que um homem reforce sua autoestima. Se um dia ocorrer dúvida com a premissa anterior, o destino é o aeroporto de Roma.
No filme Sissi e Seu Destino (Ernst Marischka, 1957), ao passarem pela Itália, os imperadores austríacos são recebidos pelo coro da ópera Nabuco, de Verdi. No teatro, os versos dos hebreus no exílio viram uma música de protesto contra os dominadores do Norte. Em meio a uma obra toda em alemão, soa ainda mais melodioso o protesto da pátria bonita e perdida. Avancemos o tempo e vamos a 12 de março de 2011. A Itália já é um país unificado e livre de bandidos de fora. O prefeito de Roma, Gianni Alemanno, anuncia novos cortes no orçamento da cultura. Na plateia, o arquiteto dos cortes: o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. O maestro Riccardo Muti rege a ópera Nabuco. Ao chegarem ao coro do Va Pensiero, a emoção domina o público. O maestro fala da sua pátria bela e perdida. Alguém grita “Viva a Itália” do público. Quebrando o protocolo sagrado do belcanto, Muti faz um bis com toda a plateia. Muitos artistas choram. “Vai pensamento, sobre as asas douradas” e me conduz ao lugar onde brilha o sentimento do meu país, belo e perdido. A música transcende. Quase todos se emocionam. É um gesto político e uma estética contra um novo tipo de invasor que já não fala alemão.
Alegria e melancolia, emoção e protesto: a imensa plateia aplaude em delírio. Por alguns instantes, a pátria foi reencontrada pelo poder magnético da música. Os italianos se unem pela beleza dos versos e pela melodia. O gênio de Verdi congrega a nação mais uma vez.
Na cena romântica do filme Sissi, os italianos, em silêncio de protesto, reconhecem a beleza do reencontro da personagem de Rommy Schneider com a filha pequena. Afinal, a Imperatriz era “una mamma”. No feminino-materno, despontou a humanidade que congregava todos. Na música, os mesmos italianos se reconhecem como um povo e mostram o uníssono de um patriotismo que parecia fora de moda. Falamos a mesma língua e cantamos o mesmo canto, viva a Itália de Verdi e nossa. Boa semana!
Leandro Karnal é historiador e escritor.