O mundo ao contrário. Ao contrário do mundo

Por

Paulo Celso da Silva

Cássia Pérez da Silva

Joaquín Torres García foi um artista uruguaio que viajou o mundo, que vivenciou as cores e tons que os lugares nos informam. Viajar suspende nosso cotidiano, altera aquelas sequências de atos costumeiros que tanto nos satisfazem, pois parecem indicar que cumprimos “nosso dever” no dia. Mudar de cidade, estado ou país nos tira isso, acordamos em um lugar diferente, depois de dormirmos diferentes e teremos atividades outras que aquelas normais.

Alguns conseguem tirar o máximo proveito disso, e Joaquim Torres Garcia foi um deles. Joaquim nasceu em Montevidéu em 28 de julho de 1874 e faleceu na mesma cidade, em 8 de agosto de 1949. Com dezessete anos estava em Mataró, estudando em La Llotja, que era a escola oficial de Belas Artes. Depois em Barcelona, na Academia Baixa e, no início do século 20, era assíduo frequentador do café Els Quatre Gats, reduto de intelectuais e artistas europeus vanguardistas.

Ainda em Barcelona, auxiliou Antoni Gaudì nos vitrais do Templo Expiatório da Sagrada Família, em Barcelona, e na catedral de Palma de Mallorca. Nos anos seguintes esteve em New York que o inspirou na produção de cenas urbanas. Uma temporada na Itália e, em seguida, Villefranche-Mer (França) e, em seguida, Paris. Em 1934, volta para sua cidade natal no Uruguai.

Na sua volta, produz a obra América Invertida (1934), na qual vemos o contorno do mapa da América do Sul “invertido”, ou seja, o Polo Sul está “em cima”, o Trópico de Capricórnio e indicado as coordenadas geográficas 34° 41’ S e 56° 9’ W (lembrem-se de suas aulas de geografia do 6° ano!) e, quando pesquisada essas coordenadas, no Google Earth é possível ver que indicam as localidades uruguaias de Progreso e Liberdad. Nada mais simbólico.

E o artista vai declarar no seu texto Universalismo Constructivo: “Eu chamei isso de ‘A Escola do Sul’ porque, na realidade, nosso norte é o sul. Não deve haver norte para nós, exceto em oposição ao nosso sul. Portanto, agora nós viramos o mapa de cabeça para baixo, e então temos uma ideia verdadeira de nossa posição, e não como o resto do mundo deseja. O ponto da América, de agora em diante, para sempre, aponta insistentemente para o sul, nosso norte”.

Depois de viver e criar em diversas partes, o artista reconhece, estudando as produções artísticas dos povos originários da sua América, uma forma de viver o seu mundo plural. E ser plural é buscar as suas origens e fazer delas uma identidade e, no caso dele, representar uma identidade pela ilustração que contraria a “visão oficial” do mundo: ou seja, essa representação do mundo proposta na Europa, chamada projeção de Mercator, na qual a ideia é manter a forma dos continentes, mas suas áreas são modificadas e o centro do mundo é o velho continente.

O desenho de Joaquín Torres García não apenas contraria a visão oficial de uma -- suposta -- ordem mundial, mas reforça a necessidade da multiplicidade de visões, com liberdade para olhar e o ver. Ele estava vivendo a iminência da segunda guerra e, possivelmente, pelo conhecimento que detinha do cotidiano dos vários lugares em que viveu, percebia e intuía que outra ordem era possível, uma ordem sem intervenções externas, não apenas europeia, mas estadunidense também. Tanto que seu mapa indica a América Central, mas não a do Norte.

A vida plural que a América do Sul, tão decantada e pouco vivida pela maioria, a vida sul americana que, cotidianamente, nos é negada. Tudo isso necessita virar nosso ver/viver o mundo imposto como certo e único por quem não somos nós. Joaquín Torres García foi um de nós. Resta-nos o ser. Sul, latinos identificados. Nosso norte é o SUL.

Paulo Celso da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, doutor em Geografia Humana (paulo.silva@prof.uniso.br).

Cássia Pérez da Silva, mestranda no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP (cassiapzsilva@gmail.com).