O mundo depois do túmulo vazio
Alex Fernandes Bohrer
Era um domingo comum na velha Judeia, quase dois mil anos atrás. Algumas mulheres andavam apressadas pelas ruas de Jerusalém. Um boato corria entre as casas apertadas e vielas insalubres. Diziam que o profeta crucificado três dias antes pelos romanos, durante a Páscoa, havia sumido de seu túmulo. O murmurinho logo ganhou força e se transformou na base teológica de uma religião que ultrapassou as fronteiras da Palestina, se tornando uma força mundial. Não é exagero dizer que esse acontecimento, seja qual for sua verdade histórica, é o mais importante pilar da cultura ocidental.
Todavia, ainda fazemos a mesma pergunta que muitas pessoas daquela época: o que aconteceu no túmulo de Jesus? Ainda que renegada pelas autoridades judaicas e desconsiderada pelos políticos romanos, os discípulos não tinham dúvidas sobre a ressurreição de seu mestre. Poucos anos após sua morte, histórias sobre encontros com um Jesus ressuscitado já circulavam entre as primeiras comunidades cristãs. Meio século depois dos acontecimentos, o enredo já tinha tomado os contornos que tem hoje: ele ressuscitou e pôde ser visto. Isso aparece de forma bem clara nos evangelhos de Mateus, Lucas e João, mas é em Marcos que estão algumas das informações mais interessantes.
Hoje é quase consenso que Marcos é o mais antigo entre os quatro evangelhos canônicos. Nos velhos manuscritos ainda existentes costumam aparecer dois arremates distintos para esse livro: um, chamado “final longo”, narra as aparições posteriores de Jesus; no outro, o “final curto”, o relato acaba abruptamente quando as mulheres chegam no túmulo e um anjo as avisa que o mestre delas havia ressuscitado. Textualmente, parece bastante crível que o “final curto” é o mais antigo e que o outro é uma adição posterior. Qual a importância desse debate? Um dos epílogos corrobora a ressurreição física, mas o outro, mais sucinto, insinua que as mulheres não viram Jesus, tendo sido alertadas por alguém.
Será que originalmente a ressurreição poderia ter sido encarada como um fenômeno não físico? Além do polêmico desfecho da narrativa de Marcos, há um evangelho esquecido que parece insinuar um viés espiritual. Trata-se do Evangelho de Tomé, um texto apócrifo, não incluso na Bíblia (como tantos outros). Lá se vê um Jesus celestial dizendo: “Onde há dois ou um, estou com ele (...) parta um pedaço de madeira, lá estou; levantai uma pedra, e ali me encontrareis”. Esses relatos demonstram que muitas discussões foram travadas para explicar o ocorrido, desde a teoria do corpo roubado, proposta originalmente pelos dirigentes judaicos, até as aparições espirituais ou físicas.
Sabermos que inumeráveis seitas surgiram nesse contexto, várias, inclusive, com visões antagônicas: umas acreditavam que Jesus era mais um profeta, outras que ele era o Messias, um salvador que os judeus esperavam. Uns diziam que ele era o Filho de Deus ou o próprio Deus. Alguns o viam como uma encarnação da sabedoria divina (sem um corpo físico, sendo, portanto, incapaz de sentir dor), enquanto outros defendiam que ele era somente um homem. O certo é que muitos pagaram com a própria vida por espalharem essas ideias, tidas como nocivas pelas autoridades imperiais. Esse processo persecutório se iniciou já na época dos apóstolos e inaugurou o culto aos mártires.
Foi somente trezentos anos depois da crucificação que uma visão se consolidou, sendo absorvida teologicamente por um Império Romano mais complacente, liderado por Constantino: Jesus era homem e Deus na mesma medida e ressuscitou fisicamente.
Esses debates mostram como Jesus sempre teve vários níveis de existência. Entender Jesus é como cortar uma cebola: ele tem muitas camadas de realidades que se sobrepõem. A cada camada que retiramos, nos aproximamos do personagem real que viveu na Palestina do primeiro século: um camponês pobre, um andarilho pregador. Quanto mais camadas deixamos, mais nos aproximamos do personagem religioso: o Messias, o Filho de Deus ou o próprio Deus. Essas realidades coexistem e sempre foi assim. Afinal, para a maioria dos cristãos, ele foi Deus e homem na mesma medida.
Sabemos que Jesus foi um personagem histórico, com vida datável. Por outro lado, Cristo (tradução da palavra hebraica “messias”) é um ente religioso, teológico e espiritual. Compreender essa balança tênue entre os dois se tornou o fio condutor da história humana posterior.
E tudo começa, claro, com aquele túmulo vazio, num domingo longínquo.
Alex Fernandes Bohrer é professor. Possui licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, mestrado e doutorado em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais.