O valor de tudo

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Crédito da foto: Divulgação / Getty Images

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Leandro Karnal

Em 1987-88, eu era um jovem estudante que morava em uma pensão da Rua Bahia, em Higienópolis (SP). Trabalhava em escolas de ensino fundamental e supletivos, com uma renda escassa e muito entusiasmo. Vivi anos que considero extraordinários. Mais de uma vez, terminou o dinheiro das passagens de ônibus antes do novo pagamento e eu voltava a pé da USP até a pensão. Desde os 23 anos de idade, nunca mais recebi um centavo do meu pai. Eu me sustentava inteiramente com bastante empenho. Não havia dor ou ressentimento: eu era jovem e descobrindo São Paulo, a USP e o mundo.

Os colegas pensionistas eram estudantes ou trabalhadores em começo de carreira, a maioria de classe média. Convidavam-me para sair. Uma vez, fomos a uma casa noturna. Pedi um drinque simpático e comentei: “É uma hora-aula”! Aquela era a minha medida de valor: a hora-aula, o montante que um professor da rede privada recebe por 45 ou 50 minutos de trabalho. Aquela bebida tinha custado uma hora de pé lutando com uma então “sexta série” na Escola Irmã Izabel de Nossa Senhora de Sion. Tomei o drinque lentamente: ele deveria durar ao menos... uma hora-aula. O valor deveria combinar com o tempo para obtê-lo. Quando alguns pediram nova rodada, aleguei um limite baixo. Não especifiquei que o “baixo” se referia ao limite financeiro, não ao álcool.

Eu vivia pela hora-aula. Entrando em faculdades particulares, a primeira informação que buscávamos na entrevista era “quanto é a hora-aula aqui”? Éramos trabalhadores movidos a essa medida.

Anos mais tarde, percorrendo a Ásia em viagens culturais, um amigo oftalmologista observou sobre um jantar em Dubai: “Isto são duas cataratas!”, explicou o valor da cirurgia de catarata e que ele avaliava algo por essa unidade. Há hora-aula e existe a hora-catarata. Eu suspirei pelo valor superior e também porque os pacientes dele eram sedados e vinham voluntariamente; os meus alunos, não.

A vida roda rápida, rodopia por vezes, galopa e até pode parar em algum ponto. Em 2020, incorporei a unidade monetária “live”. “A viagem de fim de ano custará tantas lives.”

Aumentei a renda, claro, todavia, como todas as pessoas que envelhecem, expandi os gastos e os dependentes diretos. Por vezes, imagino que há 30 anos eu tinha menos água e muito menos sede do que hoje, o que parecia compensar. A sede dispara e os sedentos também. Envelhecemos como uma cornucópia abundante que saiu do isolamento pobre da juventude com mais recursos e muito mais desejo. A ascensão é melhor do que o declínio, porém, os jovens precisam saber que o aumento do valor obtido no seu numerador virá acompanhado do aumento de pessoas no denominador.

O isolamento social na quarentena fez com que meus gastos despencassem. Houve uma lição: eu posso e quero viver com menos. A outra lição, além de racionalizar o consumo, é que, apesar de eu ser prudente, o mundo demanda reservas ainda maiores para períodos de estiagem. Qual o tamanho delas? Tenho medo daquela síndrome de “faraó” que vi em alguns amigos empresários. Vivem para sua tumba-pirâmide. Acumulam dentro da área que cerca a morte. Viver para morrer é fascínio funerário, investimento no fim e pouca atenção para a vida do meio. Não quero tal projeto. O oposto é perigoso: viver como se não houvesse amanhã. O amanhã vem e pode vir com um novo vírus. Gosto do pensamento que já vi atribuído a Jim Brown e ao atual Dalai-lama, logo vai aqui como sabedoria pura de autoria duvidosa: “Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro esquecem-se do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro.

E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido”. Talvez, seja de um terceiro autor, é uma diretiva sábia. Viver plenamente, com base em hora-aula, catarata ou “live”. Saber que tempo tem custo e que não somos imortais. Pensar na velhice como um novo período de novos desafios e necessidades. Avaliar o denominador sempre. Viver estrategicamente e levar em conta que o valor da vida supera todos os outros custos. Pensar que as coisas mais importantes são gratuitas. Evitar o arrependimento de uma vida voltada ao que era secundário deixando de lado o central. Em resumo: a crise me fez pensar em viver de outra forma, ainda melhor, com menos, com mais pessoas importantes de fato, com bons momentos gratuitos e uma mudança de valor, de hora-aula para hora-vida.

A hora-vida não pode aumentar; a fruição dela sim. Sei que irei morrer. Isso é irrelevante. O significativo é o que farei até aquela data. Morrer é inevitável. Viver é uma arte que exige empenho e sabedoria. Nada do que eu fizer pode impedir que eu encerre minha existência um dia. Tudo o que eu fizer a tornará significativa, transformadora, agradável a mim e luminosa para outros. A escuridão da epidemia e a dor que me cercava pelo país fez com que eu buscasse mais luz. O que você aprendeu com o período? É preciso ter muita esperança. A falta de esperança emperra tudo, independentemente da renda.

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.