Pra fazer valer nosso suor
Edgard Steffen
Panela velha é que faz comida boa
(Dito popular que virou sucesso sertanejo)
Surpreendeu-me a repercussão causada pela crônica em que relatei almoço em família nos tempos do fogão a lenha. Pelo teor das manifestações, percebi que o cenário descrito fez parte da rotina em lares onde houvesse um mínimo de conforto e alimentos suficientes. Rotina independente da origem, religião ou status socioeconômico.
Volto ao tema. Antes do GLP, da geladeira e dos eletrodomésticos invadirem as casas brasileiras dois tipos de fonte de calor eram comuns: fogão a carvão ou a lenha. Nas cozinhas de piso cimentado e paredes com barrado de tinta a óleo, ou naquelas de gente mais abastada, com piso de ladrilho hidráulico e azulejos nas paredes, predominavam pesados utensílios de ferro. Panelas, caldeirões, frigideiras, assadeiras de ferro, esmaltado (ágate) ou não.
Naqueles dias havia o folheiro -- profissional que o progresso tratou de extinguir. Produzia e consertava utensílios de folha-de-flandres e reciclava latas transformando-as em utilidades. Lata de óleo de caroço de algodão virava caneca de um litro, a de leite condensado, caneca menor. Somente descartadas as de pequena capacidade, como as de sardinha e massa de tomate.
Num canto da antiga cozinha, armação triangular exibia reluzentes peças de alumínio. Pouco usadas. Mais símbolos de status que equipamento culinário. Quem não as possuía afirmava “cozinhar com alumínio faz mal”, típica resposta da raposa esopiana que reputa verdes uvas inalcançáveis. Comissão mista da FAO/OMS estabeleceu como segura a ingestão de até 2 miligramas de alumínio por kg de peso por semana. Como prudência e caldo de galinha não fazem mal, talvez seja este um dos motivos para a substituição do sulfato de zinco por sais ferro como floculantes nas estações de tratamento da água.
O fogão a gás veio tornar obsoletos seus predecessores. Em áreas privilegiadas de São Paulo já existiam fogões a gás. Eram abastecidos a partir do Gasômetro do Brás. Construído no século 19 para iluminação da cidade, distribuía hidrogênio carbonado obtido de hulha importada da Inglaterra. No século 20 passou a servir ao uso industrial e combustível doméstico.
O GLP (gás liquefeito de petróleo -- mistura de butano e propano) distribuído em bojões tem história mais recente. O incêndio do Hindenburgo (New Jersey, 1937) sepultou o projeto alemão dos zepelins como navios aéreos. Nas capitais brasileiras, onde os dirigíveis deveriam aportar e serem abastecidos, grandes reservatórios de propano restaram inúteis. Para aproveitá-los surgiram empresas que o engarrafaram em botijões. Nos anos 50 já dominavam o mercado. Os velhos fogões a lenha ou carvão foram desmontados ou expulsos para os quintais.
Em média -- numa avaliação bem simplista -- as necessidades calóricas diárias do homem são 2.400 kcal (quilocalorias); da mulher, entre 1.800 e 2.200 kcal. Rachar lenha e trazê-la para a cozinha, correr atrás do frango representava gasto suficiente para o marido enfrentar um lauto almoço sem medo da obesidade. A dona de casa, que preparava o rega-bofe domingueiro das seis ao meio-dia, manipulava pesadas peças de ferro. Seu gasto quilocalórico era quase igual ao do marido.
A moderna mulher, jovem ou coroa, liberta dos grilhões dos utensílios de ferro, gasta pouca energia pra fazer comida boa. Discar para o delivery queima poucas calorias*. Digitar, menos ainda. Sem mencionar o fantástico (e poluente) mundo do plástico e a parafernália dos eletrodomésticos que poupam forças a quem se aventure pilotar modernos fogões.
Mais calor que nas cozinhas detectaremos nas academias lotadas de gente transpirando e fazendo força. Como vaticinou o “É” de Gonzaguinha: A gente quer carinho e atenção / A gente quer calor no coração / A gente quer suar, mas de prazer / A gente quer é ter muita saúde / A gente quer viver a liberdade / A gente quer viver felicidade.
Quem não quer?
(*) Discar consome 110 k/cal/hora
Edgard Steffen é escritor e médico pediatra - E-mail: edgard.steffen@gmail.com