Sem volta às aulas, como fica a alimentação escolar?
Flávia Londres
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), com origens na década de 1950, é reconhecido internacionalmente como uma referência de política de combate à fome e à desnutrição. Trata-se de instrumento importante para promoção do direito humano à alimentação -- direito fundamental estabelecido pelo artigo 6º da Constituição Federal.
O Pnae é executado de forma descentralizada por Estados e municípios, que em muitos casos complementam com seus recursos o orçamento federal repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Em 2019, o FNDE destinou R$ 3,95 bilhões para o Pnae, beneficiando cerca de 40 milhões de estudantes.
Em 2009, uma mudança na lei que rege o Pnae tornou obrigatório que governos estaduais e municipais destinem no mínimo 30% dos recursos repassados pelo FNDE para compra de alimentos diretamente da agricultura familiar. Com a mudança, fruto de debates realizados sobretudo no Consea envolvendo representantes de organizações da sociedade civil, o Pnae tornou-se uma política de duas faces: de um lado, promovendo a saúde dos estudantes, com a inclusão na merenda de alimentos locais, com diversidade e qualidade; e de outro, apoiando a estruturação de grupos produtivos, associações e cooperativas da agricultura familiar, assegurando um mercado seguro para agricultoras(es) e assim estimulando a produção e o desenvolvimento econômico local.
Os efeitos positivos dessa combinação foram notáveis. Dados oficiais e documentos dos movimentos sociais demonstram que, embora haja disparidades entre regiões e municípios, a lei é um caso de sucesso. Porém, assim como aconteceu em muitos lugares, com a chegada da pandemia de Covid-19 e a suspensão das aulas presenciais, o fornecimento da alimentação escolar foi desorganizado e as compras da agricultura familiar foram interrompidas.
Ainda no início de abril, o FNDE publicou a Resolução nº 2, autorizando a distribuição de alimentos adquiridos no âmbito do Pnae às famílias dos estudantes no período de suspensão das aulas em decorrência da pandemia. A resolução prevê que “a aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar deverá ser mantida, priorizando-se a compra local”, mas abre a possibilidade para que as compras de alimentos perecíveis da agricultura familiar sejam renegociadas e as entregas adiadas para o reinício das aulas presenciais.
Não existem ainda dados oficiais informando o número dos municípios que suspenderam o fornecimento de alimentação escolar, que substituíram a merenda na escola por kits de alimentação adquiridos em grandes redes varejistas ou vouchers para compra em estabelecimentos cadastrados, e nem quantos agricultores familiares tiveram suas vendas para o Pnae interrompidas. No entanto, notícias da imprensa e relatos de todos os cantos do País indicam que a manutenção das compras da agricultura familiar em tempos de pandemia virou exceção, e não regra.
Os danos provocados pela interrupção das compras são inestimáveis. De um lado, comprometem-se a segurança alimentar e a saúde de crianças e adolescentes das camadas mais pobres da sociedade, que comumente dependem da alimentação escolar como fonte importante de nutrientes diários -- justamente num período de queda significativa na renda familiar devido à crise. Do outro lado, desestruturam-se arranjos produtivos e de comercialização de escala local. Famílias agricultoras encontram dificuldades para criar e/ou acessar novos canais para escoar alimentos perecíveis produzidos e enfrentam graves perdas econômicas.
Há, contudo, uma chave fundamental capaz de encontrar soluções criativas para a retomada das compras da agricultura familiar e o fornecimento de alimentação de qualidade. Ela está no diálogo entre as gestões municipais/estaduais e as organizações e grupos da sociedade civil envolvidos com a execução do Pnae.
Flavia Londres é engenheira agrônoma e integrante da Secretaria Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).