‘The Last of Us’ e o novo normal: ficção ou realidade?
Tadeu Rodrigues Iuama com Thífani Postali
Muitos de nós temos o hábito de olhar para as narrativas ficcionais como destituídas do mundo histórico. Rimos, choramos ou nos apavoramos com histórias que parecem estar muito distantes de nossa realidade, o que causa certo alívio quando chegam ao fim.
No entanto, para o filósofo Umberto Eco, mundos ficcionais não passam de parasitas do mundo real, uma vez que as invenções humanas são resultantes do repertório cultural daquele que as inventou. O autor também menciona a relação do leitor com a obra de ficção. Para ele, a leitura da ficção ocorre num jogo em que damos sentido aos acontecimentos do mundo histórico, sejam eles já ocorridos ou que podem vir a acontecer.
A franquia do jogo digital “The Last of Us”, a nosso ver, é uma das mais significativas narrativas que, no contexto da ficção, aborda caminhos e situações possíveis de ocorrerem no mundo histórico atual. A narrativa ocorre entre a descoberta e o avanço de uma pandemia e se mantém numa sociedade onde a situação pandêmica foi normalizada, no sentido de ser aceita.
A pandemia inicia no ano de 2013, mas o grosso da narrativa se passa nos Estados Unidos, na década de 2030. Pessoas infectadas se transformam numa espécie de zumbi, metáfora comum nas narrativas ficcionais, que funciona como provocação à noção de monstruosidade.
Em 2033, a primeira organização social se dá por meio do controle do Estado sobre a população. O cenário apresenta um ambiente hostil onde a violência é exercida para o controle social. As ruas são repletas de militares fortemente armados, que controlam a entrada e saída de pessoas nas zonas da cidade. Os alimentos são racionalizados e pessoas detectadas com a infecção ou com comportamento suspeito, são executadas imediatamente. Nesse contexto, existem subgrupos como os contrabandistas, que contornam os militares, e o grupo de oposição ao governo, os vagalumes, formado também por cientistas, cujo objetivo é descobrir a cura e derrubar o governo opressor. Na ocasião, esse grupo é visto pelos militares como os terroristas, mas bem aceitos por parte da população. Os ideais ficam bem claros nas imagens que apresentam placas do governo com os dizeres “Denuncie infecções. A falta de cooperação custa vidas”, e a pichação na mesma placa “Os vagalumes vão nos salvar”. A questão da vacina não é resolvida e o mundo continua na pandemia.
O segundo jogo se passa em 2038. Nele, não há mais a presença de um Estado controlando a sociedade e a narrativa dá indícios de que grupos destruíram esse poder. Há, portanto, a presença de inúmeros grupos que ocupam territórios específicos e que possuem suas próprias culturas, tendo em comum, o uso da violência contra outros grupos e infectados como forma de sobrevivência. Cada grupo possui uma liderança e o treinamento militar faz parte de suas rotinas. O treinamento visa não só a execução de infectados, mas de grupos diferentes que são entendidos como ameaças.
Esse contexto se dá num mundo em que a pandemia se instalou, se tornando o novo normal. Foi resultado de uma organização governamental hostil e que ignorou a ciência como o principal agente para a resolução da pandemia. O novo normal é pautado pela separação de grupos, pela violência, pelo preconceito e ausência de diálogo, fundamental para a reorganização social pautada na ética e na ciência.
“The Last of Us” é ficção, mas pode ser facilmente lido como possibilidade nesse tempo em que vivemos no mundo histórico. Umberto Eco que o diga!
Tadeu Rodrigues Iuama é doutor em Comunicação pela Unip e mestre em Comunicação e Cultura pela Uniso. É professor da Belas Artes e membro do grupo de pesquisa MiLu. Contato: tadeu.iuama@belasartes.br
Thífani Postali é doutora em Multimeios pela Unicamp e mestra em Comunicação e Cultura pela Uniso. É professora da Uniso no curso de Jogos Digitais. Membro do grupo de pesquisa MiLu. Contato: www.thifanipostali.com