Filmes da Netflix: “O autor”

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Em “O Autor”, Álvaro (Javier Gutiérrez) supera qualquer barreira de moralidade para se tornar escritor. Crédito da foto: Divulgação

Em “O Autor”, Álvaro (Javier Gutiérrez) supera qualquer barreira de moralidade para se tornar escritor. Crédito da foto: Divulgação

Nildo Benedetti - nildo.maximo@hotmail.com

Este filme de 2017 foi dirigido pelo espanhol Manuel Martín Cuenca. Focaliza a vida de Álvaro, escriturário de um cartório de Sevilha. Pretende ser escritor e, por isso, há três anos faz um curso de literatura em que escreve textos duramente criticados pelo professor, porque são medíocres, soam falsos, insípidos, exatamente como sua vida no trabalho e em sua casa. Sua esposa, ao contrário, nunca teve pretensão de ser escritora pelo menos aparentemente --, mas escreve um romance que se torna um “best-seller”.

Na cerimônia em que ela recebe a medalha de ouro da Andaluzia, fica evidente que o marido a inveja pelo sucesso. Em seu discurso, ela agradece o estímulo que recebeu de Álvaro e diz que não pode deixar de lembrar do pequenino Bruno, que a acompanha todos os dias e “olha-me com tal admiração como ninguém jamais me olhou”. Mas tarde, saberemos que Bruno é seu cão. E é graças ao cão que Álvaro presencia a esposa transando em um carro e se separa dela.

O professor de literatura aconselha Álvaro a buscar inspiração no cotidiano e ele resolve colocar o conselho em prática: muda-se para um apartamento e começa a interferir na vida dos vizinhos e amigos, enganando-os sem o menor escrúpulo e colocando-os em situações aflitivas que vai relatando no seu romance. Sua ferramenta de manipulação de pessoas é a palavra e ele age como Iago, que destrói Otelo apenas com a palavra, na peça teatral “Otelo”, de Shakespeare.

Já se vê que o filme combina drama e comédia, porque trata de um homem que, para escrever um romance, não só recorre à realidade que o cerca, mas também intervém nessa realidade para dramatizar sua obra. O filme é um bom entretenimento, mas, ao mesmo tempo, leva o espectador a refletir sobre os limites que separam realidade e ficção e sobre o nível de canalhice que o ser humano pode atingir quando obcecado por algum propósito.

O filme também se presta a refletir sobre o processo da criação literária, porque é sobre o esforço de criar. Para desenvolver brevemente o assunto, recorrerei ao texto “Crítica: ‘El autor’ (Manuel Martín Cuenca, 2017)”, disponível no Google, do escritor, jornalista e tradutor argentino Blas Matamoro. O roteiro do filme foi extraído de um livro do escritor espanhol Javier Cercas. Em seus livros, Cercas relata episódios que ocorrem no mundo exterior, como personagens e fatos históricos, e mistura-os com ficção.

A matéria informativa de seus livros vem, digamos, de fora para o texto. O autor de uma obra literária, continua Matamoro, necessita de ter algumas habilidades: reconhecer a existência de uma realidade que é construída pelos seres humanos de um grupo social do qual ele faz parte, ser capaz de penetrar nas profundezas dessa realidade o que significa, entre outras coisas, conjecturar sobre o que move os seres humanos que a compõem - e descobrir a linguagem justa e adequada para descrevê-la. Matamoro encerra seu artigo escrevendo que Álvaro é como todo artista, um manipulador e um ilusionista.

Não sabemos se Álvaro consegue escrever um grande romance ou não. O que importa não é saber se Álvaro se tornou um grande escritor, mas sua compulsão de escrever a qualquer custo.

Na próxima semana escreverei sobre “La Valija de Benavidez”.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec