Até ‘saidinhas’ de compensação?!
Em mais um absurdo do cotidiano brasileiro, Justiça autoriza saída temporária de 2,4 mil presos na região de Sorocaba
Quando apontamos a fragilidade da legislação brasileira, quando lamentamos as brechas jurídicas que permitem tantos descalabros, quando criticamos algumas decisões da Justiça é porque, ano após ano, somos obrigados a assistir, estarrecidos, a uma série de absurdos.
Inclusive, mais um deles acaba de acontecer e atinge diretamente a população local. Nesta semana, por exemplo, cerca de 2.400 presos de regime semiaberto custodiados em presídios na região de Sorocaba estão em saída temporária. A liberação aconteceu após determinação da Justiça. Os detentos foram liberados na terça (18) e devem retornar na segunda (24). Caso não regressem às unidades prisionais, passam a ser considerados foragidos. Se capturados, eles voltam para o regime fechado.
Na região de Sorocaba, o CPP de Porto Feliz teve o maior número de presos liberados nessa “saidinha”: 836. Na sequência estão as unidades prisionais de Itapetininga (619), Sorocaba (514), Capela do Alto (267) e Mairinque (158), segundo os dados divulgados pela Secretaria de Administração Penitenciária. Essa é a primeira “saidinha” neste ano. Inicialmente, os presos teriam o benefício no período da Páscoa, mas a liberação foi adiada por causa do agravamento da pandemia à época.
A saída temporária é um benefício concedido aos detentos do regime semiaberto que recebem o direito de sair em períodos específicos como datas comemorativas de Dia das Crianças, Dia das Mães e festas de fim de ano. Por ano, os presos do regime semiaberto têm direito a 35 dias fora do sistema prisional. Em 2020, por conta da pandemia, a saída foi liberada apenas uma vez.
Agora, imagine ter de explicar isso a um estrangeiro. “A pessoa cometeu um crime, recebeu uma pena, mas depois de certo tempo -- não muito, por sinal -- já tem uma série de benefícios”. E seguiríamos tentando explicar o inexplicável. “Sim, é isso mesmo. E entre esses benefícios está o direito de ficar 35 dias fora da cadeia, em datas especiais e comemorativas”. A reação do gringo provavelmente seria uma expressão de quem não entendeu nada com a exclamação “What?!” (O quê?!). A essa altura o gringo não entenderia mais nada e você teria de dizer “é assim que são as coisas por aqui, my friend”.
Uma das chances de mudar esse cenário, ou ao menos parte dele, é algo que se arrasta há muito tempo. A proposta de novo Código de Processo Penal (CPP) tramita no Congresso Nacional há mais de 10 anos, desde 2010. Curiosamente, após muitos anos esquecido, o projeto ganhou atenção e voltou a ser encarado como um assunto que merece ser votado pelos parlamentares. O maior problema, porém, é que além de estarmos tão atrasados com esse processo, ainda corremos o risco de fazermos uma revisão equivocada do CPP, promovendo mudanças que irão afetar profundamente os processos criminais, mas na direção errada. Em vez de corrigirmos o que está errado, podemos agravar a injustiça e favorecer ainda mais bandidos e criminosos.
Entre as principais alterações propostas estão a dispensa de necessidade de perícia para o relatório final de uma investigação, a diminuição do valor da investigação realizada por delegado de polícia e agentes, a não autorização de uso de DNA para a identificação de criminosos e até o modo de como as testemunhas serão ouvidas. Retirar ferramentas eficazes, procedimentos fundamentais de investigação e garantias de autonomia e independência funcional pode significar o pior dos cenários. Lembremos do velho ditado que diz “não há nada tão ruim que não possa piorar”.