Adiamentos perigosos

Apesar das promessas e até da lei, mineradoras conseguiram adiar fim de barragens de risco em Minas Gerais

Por Cruzeiro do Sul

“Nenhuma barragem construída a montante existirá mais em Minas Gerais em três anos. E, tenho certeza, nenhum sucessor meu vai enfrentar uma tragédia como a que ocorreu há um mês”. A frase foi dita pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), em 25 de fevereiro de 2019, data da sanção do projeto de lei conhecido como “Mar de Lama Nunca Mais”. Assim como boa parte do que os políticos dizem, a promessa de Zema não se concretizou.

De iniciativa popular, o referido projeto de lei foi apresentado à Assembleia Legislativa de MG em 2016, após rompimento de uma barragem de rejeitos na cidade de Mariana, em 5 de novembro de 2015. Além de 19 mortos, a tragédia foi considerada o desastre industrial com maior impacto ambiental na história do País. O volume despejado foi de 62 milhões de m³ de rejeitos de minério de ferro. A lama chegou ao rio Doce, cuja bacia abrange 230 municípios dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

Contudo, essas consequências não bastaram. Foi necessário ocorrer nova tragédia de proporções inimagináveis para que o projeto finalmente fosse transformado em lei. Isso só aconteceu após o rompimento de outra barragem, a da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019. A tragédia deixou 270 mortos e seis desaparecidos, e fez o Brasil se tornar o país com o maior número de mortes neste tipo de acidente.

Ainda assim não foram suficientes para fazer as mineradoras cumprirem as promessas e, pasmem, nem mesmo a lei. Apesar de aprovada, a Lei Mar de Lama Nunca Mais não foi cumprida à risca. Ela dava prazo até 25 de fevereiro deste ano para o fim das barragens alteadas pelo método a montante, de maior risco por suas paredes serem construídas sobre uma base de resíduos, em vez de em material externo ou em terra firme. O sistema é o mesmo que era utilizado nas barragens que se romperam em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em 2019.

Porém, devido ao poderoso lobby, as mineradoras conseguiram adiar a obrigação, evitando sanções como a perda de licenças. A medida foi possível graças a um termo de compromisso assinado com autoridades estaduais e federais, que prevê novos prazos para a descaracterização das estruturas e o pagamento de multas no caso de descumprimento. Segundo o Ministério Público, o termo prevê indenizações por dano moral coletivo, sob pena de sanções, como multa diária, além da fixação de medidas mínimas de segurança e publicidade no processo. Além do MP de Minas Gerais, assinaram o documento o governo mineiro, por meio da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), e o Ministério Público Federal (MPF), com interveniência da Agência Nacional de Mineração (ANM). Pelo texto, quanto maior a barragem, mais tempo ela terá para ser descomissionada -- nomenclatura técnica para a desativação.

O prazo de 25/2 foi considerado inviável pelas mineradoras desde o início das discussões. A Vale, por exemplo, fez pedidos de prorrogação para a eliminação de suas 23 barragens a montante, alegando inviabilidade técnica para o cumprimento dos prazos. A principal alegação diz respeito à segurança diante da complexidade das obras, que representam aumento de riscos para as estruturas. De acordo com especialistas, o prazo estabelecido para desativar algumas barragens era realmente curto.

Assim, de acordo com a Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg), pela segurança do processo, esse entendimento se sobrepôs à Lei Mar de Lama Nunca Mais. Por isso, ainda não ocorreu o descomissionamento de 41 barragens consideradas de alta periculosidade em Minas.

Desde 2019 até o fim de 2021, foram descomissionadas sete barragens e estão previstas a conclusão das obras e reintegração ao meio ambiente de mais cinco estruturas neste ano.

Responsável direta pela tragédia em Brumadinho e proprietária de 23 das barragens a montante em Minas Gerais, a Vale informou que o processo de descomissionamento das estruturas deve ser 100% finalizado apenas em 2035. Este é “o menor prazo possível, tendo como prioridade a segurança das pessoas, dos trabalhadores e do meio ambiente”, diz a empresa. Mas será mesmo? A falta de transparência das mineradoras, os enormes interesses comerciais envolvidos e o jogo de empurra-empurra dominam a questão.

Ao adiar o fim dessas barragens, as partes envolvidas -- governos, mineradoras, MP e Federação das Indústrias de Minas Gerais -- estão brincando com uma bomba-relógio, que pode explodir a qualquer momento, varrendo do mapa vidas, cidades, rios, fauna e flora.