Copo meio cheio e copo meio vazio

A decisão do STF, neste momento, não prejudica o debate sobre o tema, só define que apenas a União pode alterar as regras da Língua Portuguesa

Por Cruzeiro do Sul

Algumas notícias precisam ser lidas da forma como elas são, principalmente quando derivam de uma decisão judicial. Não se pode extrapolar o que diz a sentença para o mundo geral, para o dia a dia e nem se concluir que, se uma coisa não pode, a outra passa a ser liberada. É preciso se ater ao que foi escrito.

Um tema muito controverso na atualidade é o uso da linguagem neutra. O assunto gera debates acalorados nos mais diversos círculos da sociedade. Argumentos pró e contra surgem aos borbotões. E, no fundo, no fundo, quase sempre todos são justificáveis conforme o prisma que se olhe.

O assunto voltou com força à tona sexta sexta-feira (10), por conta de uma decisão tomada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. No julgamento em questão, o STF derrubou uma lei de Rondônia que proibia o uso da chamada linguagem neutra nas escolas do Estado.

A ação em discussão partiu de uma iniciativa apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee). A entidade contestou a lei de Rondônia, aprovada em 2021, que impedia a inclusão da linguagem neutra na grade curricular e no material didático de instituições de ensino locais, públicas ou privadas; e em editais de concursos públicos.

Os 11 ministros da Corte declararam que a lei estadual fere a Constituição uma vez que cabe à União legislar sobre normas de ensino.

Segundo o relator do caso, ministro Luiz Edson Fachin, uma “norma estadual que, a pretexto de proteger os estudantes, proíbe modalidade de uso da língua portuguesa viola a competência legislativa da União”. “Cabe à União estabelecer regras minimamente homogêneas em todo território nacional”, escreveu o relator.

O voto de Fachin foi acompanhado na íntegra pelos ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Gilmar Mendes.

Os ministros Nunes Marques e André Mendonça concordaram com o relator em relação à inconstitucionalidade da lei de Rondônia, mas apresentaram ressalvas quanto à tese a ser fixada pela Corte. No caso de André Mendonça, por exemplo, o ministro propôs uma redação mais genérica à sentença: “Norma estadual ou municipal que disponha sobre a língua portuguesa viola a competência legislativa da União”.

Essa decisão proferida pelos ministros do STF, não libera a implementação da linguagem neutra nas escolas. Só define que quem pode estabelecer mudanças no tema é a União. Se por um lado o STF derrubou a lei que proibia o uso da linguagem neutra, por outro também deixou claro que está proibido liberar o uso da linguagem neutra, sem que o MEC crie todo um projeto regulamentando o tema. Isso impede que Estados e municípios governados por quem defende a linguagem neutra se aventure a açodadamente introduzi-la no âmbito escolar.

Alterar a Língua Portuguesa não é uma tarefa fácil. Vai ser necessário muito estudo, avaliações de especialistas no Brasil e em outros países que também utilizam o português e o tema terá que ser debatido e aprovado pelo Congresso Nacional.

As regras da gramática normativa, aquela que aprendemos na escola, demoram a mudar. Primeiro os linguistas analisam as novidades na literatura e nos meios de comunicação. Só quando uma mudança significativa é notada e começa a se tornar corrente nos usos da língua é que são propostas as revisões. Esse processo pode levar anos até virar consenso entre os estudiosos e ir parar nos livros escolares.

Na ortografia, a mudança ocorre por força de lei e também são mudanças bastante raras. O Novo Acordo Ortográfico, que remodelou a Língua Portuguesa para todos os países lusófonos -- aqueles que falam a Língua Portuguesa --, foi em 2009 e precedido de longos debates. Nesse caso específico, a intenção dos especialistas foi apenas de simplificar o português para que todos os povos tivessem a mesma escrita.

A decisão do STF, neste momento, não prejudica o debate sobre o tema, só define que apenas a União pode alterar as regras da Língua Portuguesa. Até lá, continuam valendo nas escolas, única e exclusivamente, as normas cultas perpetuadas há séculos por Camões, Fernando Pessoa, Drummond, Bilac e outros tantos que ajudaram a construir e propagar a nossa língua.