O que fazemos aos idosos nos condena

Até mesmo o ambiente urbano -- sem falar no interior das residências -- é hostil

Por Cruzeiro do Sul

Mais grave ainda é a percepção de que o estatuto tem sido pouco respeitado no país

“Homem é preso pela GCM acusado de agredir a própria mãe de 82 anos em UPH.”

“Jovem é presa, suspeita de furtar mais de R$ 14 mil da própria bisavó de 80 anos.”

Por si só, essas duas ocorrências policiais registradas, respectivamente, na segunda-feira (16), em Sorocaba, e na terça-feira (17), em São Roque -- e publicadas pelo jornal Cruzeiro do Sul -- causam estranheza, repulsa, revolta e tantos outros sentimentos que colocam em dúvida a tão propalada superioridade humana diante dos animais considerados irracionais.

O choque não se dá apenas pela violência cometida contra pessoas idosas, fragilizadas fisicamente e sem a menor possibilidade de defesa.

Mas, especialmente, por conta dos causadores do sofrimento: seres gerados ou alentados pelas próprias vítimas.

Afora as questões sentimentais -- que, certamente, ensejariam uma abordagem à parte --, chamam a atenção as implicações sociológicas, legais e de políticas públicas envolvidas.

Por esse viés, a coincidência de fatos como os citados acima com as comemorações dos 20 anos do Estatuto da Pessoa Idosa (EPI) -- aprovado pelo Congresso em setembro de 2003 e sancionado em 1º de outubro seguinte -- demonstram que a letra fria da lei é apenas um pequeno passo para a sociedade atingir o estágio de conscientização necessário aos objetivos pretendidos.

Sem diálogo, divulgação, preparação, treino e cobrança responsável, o caminho, certamente, alonga-se e pode não levar aonde deveria.

A história recente do país está repleta de boas intenções que, mesmo transformadas em normas oficiais -- geralmente inerentes e óbvias --, vagueiam durante décadas até começar a dar resultados.

Um exemplo clássico é outro regulamento engendrado com a proposta de garantir direitos inatos aos brasileiros que estão apenas começando sua jornada: o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Aos 32 anos, o incontestável ECA ainda é ultrajado diariamente.

Propostas que seguem trajetos semelhantes são a Lei Maria da Penha -- instituída há 17 anos, para defender as mulheres da selvageria masculina -- e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, em vigor desde 2016.

Mais do que prover gratuidade em transporte coletivo, vagas preferencias em estacionamentos e agilidade em estabelecimentos e serviços públicos, o EPI torna claro os evidentes direitos do cidadão com 60 anos ou mais.

O artigo terceiro diz que “é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.

Uma pesquisa realizada neste ano pelo Instituto DataSenado -- órgão do Senado Federal -- revelou que, apesar de 75% da população afirmar já ter ouvido falar sobre o EPI, apenas 6% possuem alto nível de conhecimento sobre ele.

A pesquisa também mostrou que 73% das pessoas dizem acreditar que o Estatuto da Pessoa Idosa é apenas ocasionalmente respeitado, enquanto 20% das pessoas idosas sentem que ele nunca é devidamente cumprido.

Outro dado preocupante obtido pelo estudo: enquanto a maioria das pessoas com menos de 60 anos avalia sua qualidade de vida como ótima ou boa, menos da metade dos idosos compartilha desse sentimento, especialmente aqueles com renda familiar mais baixa.

Mais grave ainda é a percepção de que o estatuto tem sido pouco respeitado no país, uma opinião corroborada por especialistas no tema.

Embora esteja vigente há 20 anos, o EPI só é plenamente respeitado na opinião de 7% da população.

Para 73%, ele é respeitado às vezes, e para 15%, nunca é respeitado.

Esse sentimento é ainda maior entre aqueles para quem a lei foi feita.

Cerca de 20% dos idosos entendem que o EPI não é cumprido nunca.

As informações levantadas pelo DataSenado ajudam, igualmente, a desvendar situações específicas que transtornam o dia a dia das pessoas idosas.

As respostas obtidas apontam, por exemplo, que, em muitos casos, até mesmo o ambiente urbano -- sem falar no interior das residências -- é hostil.

Quando se trata de acessibilidade, há desafios em áreas como calçadas e transporte público.

Uma rápida caminhada por Sorocaba deixa evidente que a cidade não está preparada para quem possui alguma limitação motora.

Na maioria dos bairros, os chamados passeios públicos são repletos de obstáculos, desníveis, degraus, buracos, árvores mal plantadas e até fezes de animais, a dificultar o direito de ir e vir com segurança dos cidadãos mais velhos, como também das crianças, mulheres grávidas ou transportando bebês e cadeirantes.

O cenário -- que ainda combina alto nível de violência com renda insuficiente, serviços públicos de saúde precários e poucas opções de lazer, para citar apenas alguns contextos -- é extremamente preocupante, na medida em que as estatísticas provam o envelhecimento acelerado da população.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2003, as mulheres e os homens com mais de 60 anos representavam cerca de 9% da população brasileira.

Hoje, esse percentual já alcança 15%, devendo chegar a 23% em 2050 e 32% em 2060.

Ou seja, no início da segunda metade deste século, os idosos no país serão mais de 70 milhões.

Apenas em Sorocaba, onde o Censo de 2010 registrou 65 mil residentes com 60 anos ou mais, a projeção para daqui a 37 anos é de, ao menos, 300 mil idosos.

Todos esses fatos e estatísticas ensejam inúmeras perguntas que precisam ser respondidas com a maior brevidade possível.

Algumas são destinadas exclusivamente aos governantes, entre elas: como recuperar o tempo perdido e implantar as políticas públicas básicas capazes de proporcionar um futuro menos desconfortável a todos nós e aos nossos descendentes?

Outras devem ser ponderadas pela sociedade: de que forma discutir e conscientizar a humanidade sobre essa transformação iminente?

Porém, grande parte -- se não a maior -- dessa mudança de paradigma depende de cada um dos futuros idosos.

E isso fica, literalmente, como lição de casa.