Falta de sintonia
As crianças de famílias com algum poder aquisitivo devem viver em aquários e qualquer deslize paterno justifica a punição
O Brasil está se tornando um país bastante estranho. A falta de sintonia entre os poderes é cada vez maior. No meio dessa confusão, o cidadão comum fica sem saber para que lado ir ou que caminho seguir.
Os ministros do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, têm tomado várias posições controversas. Alguns defendem a liberação do aborto, a descriminalização do uso de drogas, o direito de crianças circularem sozinhas pelas ruas, tudo em nome da liberdade máxima do indivíduo.
Ao mesmo tempo, querem cercear a liberdade de expressão, a atuação dos meios de comunicação e punir aqueles que se manifestam contra decisões tomadas pelo judiciário.
No Congresso, o caminho é inverso. A maioria dos deputados defende a máxima restrição ao aborto, a punição para quem utiliza drogas e a necessidade de os pais acompanharem os filhos, o tempo todo, até que eles completem 12 anos de idade.
São posições bastante antagônicas e fica difícil saber qual deve ser respeitada.
Na Câmara dos Deputados, um projeto de lei quer impor o pagamento de multa para pais ou responsáveis que deixarem uma criança menor de 12 anos sozinha em veículos ou em áreas comuns de condomínios.
O texto já foi aprovado em uma das comissões e deve passar por outras três antes de ser discutido no Senado Federal.
A intenção da proposta é alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), acrescentando trechos que, segundo o texto, visam prevenir acidentes domésticos.
Se o projeto chegar a virar lei, os pais que forem condenados por “abandonar os filhos” à própria sorte terão de pagar multa entre cinco e vinte salários mínimos.
Vai bastar deixar a criança alguns minutinhos desacompanhada no carro, no estacionamento ou no parquinho do prédio para estar sujeito à punição.
O mesmo vale para as áreas comuns do condomínio, como elevadores, piscinas, saunas e academias. Pelos valores do salário mínimo de hoje, o valor da multa pode chegar aos R$ 26 mil.
O projeto não prevê apenas punições para os pais. Os condomínios também poderão ser penalizados.
Para isso, basta o síndico não afixar em lugar visível e de fácil acesso as regras sobre o uso dos espaços e equipamentos. A multa nesse caso pode variar de três a dez salários mínimos.
Segundo os parlamentares envolvidos no projeto, tudo isso é para aumentar a segurança das crianças.
Só que ao mesmo tempo, o judiciário tem tomado caminho inverso. Decisão recente da Justiça do Rio de Janeiro proibia a apreensão de crianças e adolescentes para averiguação mesmo sem flagrante ou ordem judicial.
Para a Justiça, uma criança perambulando pela rua, sem comida, sem casa, sem supervisão teria o direito de estar lá, em nome da liberdade, sem ser incomodada.
A medida foi revogada, provisoriamente, pelo Tribunal de Justiça do Estado, mas a sentença do juiz tem como base uma decisão do STF de 2019 que garante o direito de menores viverem sozinhos nas ruas.
Dá para entender o tamanho da confusão? Os legisladores querem impor uma supervisão máxima às crianças até 12 anos.
Já o Judiciário acredita que elas, apesar da pouca idade, têm o direito de escolher como e onde querem viver.
É claro que nesse debate está embutida a enorme desigualdade social que enfrentamos no país.
As crianças de famílias com algum poder aquisitivo devem viver em aquários e qualquer deslize paterno justifica a punição.
Já as crianças mais pobres podem fazer o que quiser, sem que os pais sejam incomodados.
Dormir na rua, passar fome, ser aliciada por traficantes e criminosos sexuais, tudo em nome do direito à liberdade.
Essa dicotomia explícita existe num país que garante, em sua Constituição, que todos somos iguais perante a lei.