Como evitar disputas entre os Poderes
De acordo com a Constituição do Brasil, as funções do Estado são exercidas por três Poderes distintos e independentes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Eles devem funcionar em harmonia, de maneira a se complementarem e se limitarem em suas ações. Dessa forma, um Poder controla o outro.
Básico, claro e sem margens para outro tipo de interpretação. Respeitando essa premissa, o Estado funciona bem tendo o cidadão como prioridade nacional e não os interesses individuais e de determinados grupos que maculam a regra maior regente no Brasil.
Mas, de uns tempos para cá — de maneira mais acintosa — não é bem isso o que se tem visto da parte dos poderes constituídos. É uma queda de braço que escancara a intervenção de um poder no outro, desrespeitando a esperada harmonia entre eles.
Agosto — mês que se finda — trouxe a público um exemplo dessa desarmonia, com reflexos ainda a serem calculados; politicamente falando.
As Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado, em conjunto com dez partidos — PL, União Brasil, PP, PSD, PSB, Republicanos, PSDB, PDT, Solidariedade e PT — apresentaram pedido de suspensão de liminar das decisões monocráticas do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino. O mais novo membro da Corte e indicado pelo presidente Lula decidiu interromper a execução de emendas impositivas que transferem recursos para Estados e municípios. Somente neste ano, as emendas individuais de transferências especiais somam R$ 8,2 bilhões.
O que se ouve é que essa decisão de Dino foi para atender anseios do Executivo, que precisa cortar gastos, mas não quer mexer no seu próprio bolso. Ou seja, o governo federal precisa economizar, fazer o dinheiro aparecer, para cumprir as metas fiscais, mas não quer cortar os seus próprios gastos. Então, o corte deve ser feito de outro lado.
Os parlamentares, por sua vez, acharam péssima a decisão de Dino. Afinal, é com dinheiro que conseguem apoio em suas respectivas bases para buscar a reeleição contínua.
Decisões do ministro Alexandre de Moraes, do STF, também desagradam parte da opinião pública por muitas das vezes favorecer determinada ala política em detrimento de outra. Aquela coisa de esquerda e direita. O que se fala é que algumas decisões do STF têm maior viés político do que jurídico, propriamente dito.
O assunto é polêmico, palpitante e demanda muita reflexão, uma vez que há uma Constituição a ser cumprida.
Na sexta-feira (23), no Senado Federal, a comissão de juristas responsável por elaborar o anteprojeto da Lei do Processo Estrutural realizou a terceira audiência pública sobre o tema.
Na discussão central, está o eventual ativismo a partir de processo judicial estrutural, de intervenção do Judiciário em matérias que, tradicionalmente e constitucionalmente, são da competência, a priori e exclusiva, do Legislativo e do Executivo, e que podem transformar o processo estrutural em um palco de disputa indesejável entre os Poderes.
A expressão processo estrutural surgiu entre as décadas de 1950 e 1970 nos Estados Unidos. O termo se refere a demandas que chegam ao Poder Judiciário quando políticas públicas ou privadas são insuficientes para assegurar determinados direitos.
Nesses casos, a discussão é transferida para a Justiça, que usa técnicas de cooperação e negociação para construir uma solução efetiva para o problema.
O processo estrutural tem relação, ainda, com o conceito de ativismo judicial. Isso ocorre quando o Poder Judiciário é chamado a se posicionar sobre temas que seriam originalmente de competência dos Poderes Legislativo ou Executivo. O projeto de lei sobre processo estrutural deve estabelecer parâmetros para o posicionamento da Justiça em situações como essas.
A professora da Universidade de Brasília (UnB), Daniela Moraes, integrante da comissão de juristas, disse que o grupo de trabalho se preocupa com a conceituação do litígio estrutural, não necessariamente do processo estrutural. “Nossa proposta é que haja uma reflexão sobre a delimitação do conceito para os casos que tratam de reestruturação de instituições públicas e privadas e que também recaiam sobre a delimitação de reestruturações de políticas públicas e também de políticas internas ou privadas.” Bem complexo, mas dá para resolver; e o diálogo é sempre o melhor caminho.
A secretária de Altos Estudos Institucionais do Supremo Tribunal Federal (STF), Patrícia Perrone, chamou a atenção para um ponto que considera crucial na discussão. “O Judiciário não é o local, por excelência, para formulação de políticas públicas. E formular políticas públicas significa alocar recursos que são escassos. A intervenção do Judiciário tem problemas de legitimidade democrática, uma vez que os juízes não foram os eleitos para fazer escolhas dentro da impossibilidade de atender todo mundo. A despeito disso, o Poder Judiciário vem sendo chamado a interferir sobre vários temas. E não dá para negarmos que a interferência eventualmente faz, também, essas agendas andarem.”
Para os juristas, regular o processo estrutural ajudará a evitar disputas entre os Poderes. E é isso que todos esperam.