Brasil e o escárnio dos ‘fura-filas’
Não completou nem mesmo uma semana do início da vacinação contra a Covid-19 e o País começa a tomar conhecimento, estarrecido, dos abusos, da falta de critérios e do ‘jeitinho brasileiro’ na imunização. O escárnio vem sendo apresentado de todas as formas.
Não satisfeitos em furar a fila, muitos dos vacinados incorretamente ainda têm o disparate de postar fotos e vídeos em suas redes sociais. Celebram seu “momento de glória”.
Na verdade, mostram que, além da falha de caráter, são ególatras -- pois querem mostrar ao mundo que são os tais -- e burros, pois acabam se expondo e escancarando sua desumanidade.
No Amazonas -- sim, aquele mesmo Estado onde as pessoas estão morrendo por falta de oxigênio --, o Brasil descobriu o escárnio pelas redes sociais das filhas do dono da maior universidade da região, a Nilton Lins.
As duas moçoilas foram nomeadas às pressas pelo prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), numa unidade básica de saúde.
O objetivo seria apenas receber a vacina. Além de furarem a fila justamente no Estado que mais sofre com a doença, elas não resistiram à tentação de espalhar fotos e vídeos no na rede social Instagram para quem quisesse ver -- e se indignar.
Por conta dessa e de outras supostas irregularidades, a vacinação contra a Covid foi suspensa em Manaus para um ‘replanejamento na campanha’, e estava prevista para ser retomada hoje.
No município de Jupi, em Pernambuco, por exemplo, o fotógrafo oficial da prefeitura, Guilherme J., que estava no local apenas para registrar a primeira imunização, acabou vacinado.
E mesmo sem estar no grupo de risco, claro. Após a repercussão do caso, o fotógrafo disse estar arrependido. ‘Faltou empatia’, disse.
Tanto ele como a secretária de saúde da cidade, Maria Nadir Ferro, que também foi imunizada, são investigados pelo Ministério Público por furar a fila da vacinação.
Segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE), a cidade de Jupi recebeu 136 unidades da vacina para as duas doses de 68 profissionais de saúde que atuam nos serviços da cidade.
E quem acha que tais absurdos se restringem aos locais mais remotos e distantes das grandes cidades e dos holofotes, está redondamente enganado.
Nem mesmo a portentosa capital paulista escapou de uma situação capaz de embrulhar o estômago das pessoas de bem.
Embora ainda existam inúmeros postos de saúde e hospitais públicos e privados sem qualquer previsão de receber a Coronavac, funcionários da administração, professores e até estudantes de medicina do Hospital das Clínicas foram imunizados nesta semana com as doses distribuídas pelo governo do estado.
E, pasmem, muitos deles trabalhando em home office. Ou seja, estão vacinando quem está em casa enquanto profissionais atendendo em equipamentos de saúde pela cidade não têm ideia de quando vão receber a imunização.
Uma aberração. Questionado, o HC afirmou em nota que encerrou sua campanha vacinando cerca de 24 mil pessoas, 60% de todo o corpo de colaboradores, e que 4.600 doses serão devolvidas ao governo.
‘Foram priorizados os profissionais com maior potencial de exposição à doença, que contabilizam cerca de 25 mil pessoas. O HCFMUSP vai apurar os casos que eventualmente estejam fora dos procedimentos de vacinação’, diz a nota.
Bem, seja qual for a desculpa mirabolante que o HC espera encontrar, se qualquer pessoa trabalhando em home office e que não esteja no grupo prioritário receber a vacina, é um absurdo.
Ponto final. E que fique claro, não se trata de criticar a relevante atuação do Hospital das Clínicas. É uma instituição importantíssima na prestação de serviços de saúde à população. Mas independentemente de qualquer coisa é necessário ter critérios que priorizem os trabalhadores da linha de frente.
E fica também a triste constatação. Se nem mesmo o Hospital das Clínicas, cérebro e coração da saúde em São Paulo, foi capaz de impedir o ‘fura-filismo’ e o jeitinho, imaginem nos milhares de hospitais, unidades de saúde, prefeituras e governos pelo Brasil afora...
A bem da verdade, tais atitudes não chegam a surpreender, Pelo contrário, infelizmente já eram absolutamente esperadas.
Nem a maior pandemia em mais de 100 anos foi suficiente para endireitar o caráter de uma parcela de brasileiros que segue a Lei de Gérson, aquela em que se deve levar vantagem em tudo (aos mais novos, a expressão Lei de Gérson pegou após o ex-jogador e tricampeão do mundo na Copa de 70 estrelar uma propaganda de cigarros em que falava ‘o importante é levar vantagem’).
No final das contas, os adeptos da Lei de Gérson não estão nem aí. Querem apenas cuidar de si mesmo e mostrar que já tomaram a vacina -- enquanto milhões de pessoas na linha de frente da pandemia ou em grupos prioritários ficaram sem.
Até quando vamos aturar esse jeitinho brasileiro? Até quando vamos tolerar essa zombaria?