Fake news dificultam luta contra a Covid
Não bastassem as 122 milhões de pessoas infectadas pelo novo coronavírus em todo o mundo -- das quais, quase 2,7 milhões haviam perdido a vida até este sábado (20) --, os seres humanos estão às voltas, simultaneamente, com uma ameaça virtual quase tão letal quanto o vírus biológico potencializando o problema: as nocivas fake news.
O poder devastador das notícias mentirosas constitui perversidade real desde tempos imemoriais, porém, ganhou dimensões catastróficas por meio das modernas redes sociais. Informações deturpadas -- ou totalmente inventadas -- são disseminadas em velocidade espantosa para todos os recantos, gerando situações muitas vezes irreversíveis, incluindo o agravamento da pandemia de Covid-19 e de seus múltiplos encadeamentos.
Considerando tudo o que está em jogo neste momento, é justo exigir que as autoridades -- especialmente as legislativas -- priorizem a desinstitucionalização da mentira, seja criando ferramentas punitivas específicas, seja obrigando as empresas que operacionalizam as plataformas a impedirem seus usuários de difundirem inverdades.
O sorocabano teve a oportunidade de aferir o potencial destrutivo das fakes em meados da semana que passou. Na quinta-feira (18), um áudio atribuído ao vereador Vitão do Cachorrão (Republicanos), que circulou via WhatsApp, pegou a população de surpresa com a informação de um suposto lockdown em Sorocaba a partir do dia seguinte.
A mensagem citava o fechamento total dos comércios no final de semana. Até mesmo farmácias, supermercados e postos de gasolina eram relacionados na lista de serviços impedidos de funcionar. A “notícia” concluía informando que os infratores seriam exemplarmente punidos, inclusive com uma multa no valor de R$ 500,00.
O vereador desmentiu a situação posteriormente, porém, a postagem já havia sido compartilhada milhares de vezes. Em poucos minutos, a Redação do jornal Cruzeiro do Sul recebeu inúmeras ligações telefônicas e questionamentos por WhatsApp e por meio das demais redes sociais de pessoas em busca de confirmação das informações.
Não obstante as repercussões assustadoras e a natureza gravíssima das fake news no âmbito da saúde pública, as reações das autoridades -- pelo menos das brasileiras -- têm sido débeis. Instituições como o Ministério da Saúde e a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo têm se limitado a divulgar desmentidos e a elaborar listas de notícias inverídicas, copiando iniciativas da imprensa.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), por sua vez, classificou a onda de desinformação sobre a pandemia como desinfodemia. A instituição internacional divulgou um documento alertando os governos nacionais e as empresas do setor de internet para os perigos desse fenômeno e pedindo ações imediatas. “Tamanha viralização de desinformações acaba limitando o impacto na população de informações verdadeiras”, resumiu Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, admite que a situação pandêmica e a emergência mundial decretada pelas autoridades sanitárias -- juntamente com as instruções de isolamento das lideranças governamentais -- geraram uma repentina migração digital da sociedade, ocasionando diversas mudanças de comportamento, como, por exemplo, o aumento indiscriminado de fake news.
Um relatório do órgão divulgado em maio de 2020 já reconhecia o problema, advertindo que “a combinação de tempo ocioso, maior exposição às redes sociais, ignorância da doença, das suas consequências e do futuro tem gerado uma disseminação de notícias falsas ou imprecisas sobre a Covid-19 e suas implicações sociais e econômicas”.
Detectado há cerca de 10 meses pela OMS, o fenômeno se manifesta desde o início por meio do “compartilhamento febril, pelos usuários das redes sociais, de tudo o que se refere ao SARS-Cov-2, gerando desinformação e confusão na população com relação a diagnósticos imprecisos da doença, tratamentos caseiros alternativos sem qualquer comprovação científica, supostos medicamentos para a cura, inverdades sobre desenvolvimento e reações provocadas por vacinas, supostas medidas de isolamento social e decisões governamentais sem fundamento”.
Uma série de pesquisas desenvolvidas pela rede de mobilização mundial Avaaz demonstrou que as fake news têm mais repercussão no Brasil do que na maioria dos países. Um desses estudos, com cerca de 61 milhões de usuários, apontou que a proporção de brasileiros integrados às redes sociais que acreditam em notícias falsas é quase 50 pontos porcentuais superior à de italianos e 25 pontos percentuais maior do que entre os norte-americanos.
De acordo com esse estudo, há uma verdadeira infodemia sobre o coronavírus no Brasil, onde sete em cada dez pessoas entrevistadas acreditaram em ao menos um conteúdo desinformativo sobre a pandemia. Ainda conforme os dados obtidos por meio da enquete da Avaaz, o WhatsApp e o Facebook estão entre as três fontes mais citadas como vetores de conteúdos falsos.
Pressionadas pela imprensa mundial, grandes empresas de tecnologia voltaram suas atenções para esse padrão de comportamento através de suas plataformas e, embora ainda timidamente, passaram a agir. Facebook, WhatsApp, Twitter e Google, por exemplo, informam que estão revendo suas políticas de acesso e criando métodos para tentar identificar e impedir a publicação e repasse de fake news e/ou direcionando os usuários a conteúdos confiáveis sobre a doença e a medidas governamentais e sanitárias.
No Brasil, cerca de 20 projetos de lei estaduais prevendo punições à divulgação ou compartilhamento de fake news estão em discussão desde meados do ano passado, porém, nenhuma tramitação foi concluída até o momento.
Na esfera federal, foi aprovado no início de 2021 o projeto de lei número 2.630/20, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).
A iniciativa busca garantir maior transparência nas redes sociais e em serviços de mensagens privadas da internet, para desestimular o abuso ou manipulação que possam causar danos individuais ou coletivos. No entanto, ainda depende de regulamentação para entrar em vigor.
De maneira geral, o enfrentamento das fake news no Brasil está apenas começando. Para se ter uma ideia das dificuldades enfrentadas no País no que se refere ao estabelecimento de uma política eficiente de proteção do público contra as informações inverídicas, basta dizer que nem mesmo os especialistas chegaram a um consenso que permita balizar o que é, de fato, desinformação e fake news e o quanto essa definição conflita com o princípio da liberdade de expressão.
Na prática, como demonstrado no dia a dia, há dois poderosos vírus em circulação e a serem enfrentados no momento: o novo coronavírus e o vírus das fake news sobre o próprio coronavírus. E a única arma existente contra ambos é a informação real e verdadeira.
Vamos todos, portanto, em busca das notícias verdadeiras, dos fatos comprovados e das fontes confiáveis. Em caso de dúvida, devemos optar por não passar adiante os relatos que recebemos. Na luta contra a Covid-19, tudo é passível de dúvida até que os pormenores e as circunstâncias provem o contrário. Todos pela verdade!