O perigo entra em campo
Ambíguas, duvidosas, esdrúxulas e mercantilistas. Quatro adjetivos que podem definir, genericamente, as formas como a pandemia de Covid-19 vêm sendo enfrentada em qualquer parte do planeta.
A descrição se encaixa, sobretudo, no que se refere ao setor de esportes. No mundo das atividades físico-lúdicas, as contradições passaram a fazer parte do cotidiano de quase todas as modalidades que tiveram os treinamentos ou competições liberadas após o mais longo período de interrupção simultânea da história.
Lamentavelmente, as questões são norteadas em função das suas implicações financeiras. O clássico “dois pesos, duas medidas” fica nítido quando se compara as soluções adotadas para as competições desenvolvidas no âmbito amador e aquelas classificadas como profissionais.
A despeito da inegável necessidade de rendimentos para a manutenção de clubes e federações -- assim como para a sobrevivência dos próprios atletas e demais profissionais que atuam na área -, o valor das vidas de todos os envolvidos inclusive dos familiares destes - é, precisamente, idêntico.
As comprovações dessa dualidade são inúmeras. Na última terça-feira (11), por exemplo, a Secretaria de Esportes do Estado de São Paulo anunciou o cancelamento dos Jogos Regionais e dos Jogos Abertos Horácio Baby Barioni (Jogos Abertos do Interior) em 2020.
As duas tradicionais disputas envolvem dezenas de categorias desportivas. A primeira, restrita aos competidores de uma mesma região paulista, como a própria denominação sugere, ocorreria no próximo mês de outubro, servindo como seletiva para a outra.
Já os Abertos, envolvendo os melhores atletas e equipes paulistas, são disputados, geralmente, na segunda quinzena de novembro. De acordo com o titular da pasta, Aildo Ferreira, a medida extrema foi necessária para seguir as determinações do Centro de Contingência ao Coronavírus em São Paulo.
Não obstante, a legítima - e justificável - preocupação com a contenção da epidemia, tanto o Centro de Contingência como a Secretaria aprovaram, no dia 8 de julho passado, portanto há mais de um mês, o pedido da Federação Paulista de Futebol (FPF) para a retomada do Campeonato Paulista. A Série A1, que envolve os 16 times da chamada elite estadual, inclusive, já se encerrou.
A Série A2, da qual faz parte o Esporte Clube São Bento, de Sorocaba, será reiniciada na próxima quarta-feira (19). Situação semelhante viveram os demais Estados da Federação, cujos campeonatos locais de futebol também chegaram ao fim recentemente ou estão em vias de decidir seus campeões.
Nacionalmente, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), igualmente com o endosso das autoridades da Saúde, iniciou na semana passada as disputas das séries A, B e C, além de ter agendado o pontapé inicial da Série D para 19 de setembro. Ao todo, apenas o Campeonato Brasileiro mobiliza 118 equipes de todas as regiões do País.
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Na prática, são milhares de jogadores, técnicos, dirigentes e equipes de arbitragem se deslocando por todo o País, dividindo espaço com outros viajantes em aeroportos e terminais rodoviários, confinados em aviões, ônibus e hotéis. Tudo isso, no justo momento em que o número de infectados chega a 3,2 milhões e o de mortos a 100 mil.
É inegável que a volta das atividades esportivas obedece a critérios restritivos. Mesmo assim, as imprecisões são flagrantes.
Além da temerária e indefensável diferenciação entre competições amadoras e profissionais subentendendo que a integridade de quem ganha a vida como atleta e seus parentes vale menos do que a subsistência das instituições que defendem --, há a inconsistência dos critérios em si. Embora todas as partidas estejam sendo disputadas sem a presença de público e até com limitação de integrantes da imprensa nos estádios, há falhas flagrantes nos protocolos, como atrasos na liberação dos resultados dos testes para Covid-19, compartilhamentos de espaços reduzidos nos trajetos e aglomerações inexplicáveis nos bancos de reserva.
Nem todos os jogadores que estão na reserva, assim como os integrantes da equipe técnica, utilizam máscaras ou evitam as aglomerações. Nos momentos de comemorações ou de reclamações, então, todas as normas são relegadas ao segundo plano e o que impera, mesmo, são as emoções.
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As incoerências, contudo, vão muito além, incluindo a demora na divulgação dos resultados dos testes para detecção da doença realizados em todos os envolvidos nas competições. Vale ressaltar, que a CBF e a maioria das federações estaduais de futebol contrataram uma única instituição para supervisionar os exames. Já houve casos de exames trocados, positivações informadas após a realização de partidas e, pior ainda, de resultados que simplesmente desapareceram no meio do caminho.
Diante de todos esses lapsos, está claro que a retomada das atividades esportivas foi intempestiva ou, no mínimo, decidida sem os cuidados necessários.