Tempos de folia e desconfiança

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No meio do Carnaval fica difícil fugir aos assuntos que não tratem de foliões. O que escapa ao comum é a morte do neto de Lula, Arthur, atingido por uma doença infecciosa grave, a meningite meningocócica. Esse acontecimento revela uma tragédia em muitos aspectos e um ponto comum a todos nós. Nenhuma mãe, pai, avós devem assistir, presenciar a inversão natural das coisas e participar da tristeza indelével da morte de seus sucessores. Ao mesmo tempo, nenhuma criatura merece receber comentários sobre sua dor, em especial dentro de um clima de ódio que nada nos ajuda enquanto seres humanos. Comentários tóxicos encontrados nas redes sociais -- e muitos, prontamente respondidos à altura -- sobre o merecimento da dor e da tragédia, atitudes que não nos melhora enquanto Nação. Expõe, apenas, o pior de cada um, como se fosse criada uma nova classe de ser vivente, emergido do submundo, do lado escuro da Força: o animal ideológico, o selvagem que comemora a morte de uma criança. Não merecemos isso no Brasil que queremos criar. É muito grave confundir ódio ideológico como uma vingança do destino.

Ao mesmo tempo, espalha-se pelo País, particularmente nas capitais, uma sensação de festa e diversão. Diante da quase imposição que os meios de comunicação, em especial as televisões dedicam ao Carnaval, o Brasil continua, mesmo que lentamente, em seus passos rumo a uma esperançosa recuperação.

Não há como ignorar uma transformação no modo de enfrentar os problemas do País. Mudou porque a população mudou. Se antes a maioria das pessoas se interessava pela vida ficcional das novelas, assuntos inflamados sobre personagens ou sobre a vida das chamadas celebridades, atualmente tudo isto ficou no campo da diversão. Não há mais confusão ou até mesmo escape da realidade para um espaço de divertimento que, se não alienados, não deixa ver uma conscientização social dos problemas brasileiros.

A grande mudança veio com a operação Lava Jato, a maior investigação de corrupção do País, que caiu nas mãos de juiz jovem com disposição para enfrentar os poderosos. O resto é história. Espera-se que este jovem e intrépido juiz tenha condições e vontade para continuar seu trabalho sendo imparcial com as incongruências e casos especiais que possam aparecer em seu caminho.

A grande transformação se deu nos brasileiros, de modo que, por alguma razão, chegamos ao limite do suportável depois de 500 anos de história e dois séculos de República. Passamos a não aceitar explicações incompletas, verdades produzidas ou esquecimentos. A sociedade despertada, seja pela velocidade das mídias sociais, seja por uma população mais jovem, mudou. Os jornais e a imprensa de modo geral, que sempre tiveram protagonismo, anteciparam-se e abriram discussões em várias frentes. Deram voz, espaço e tempo a grupos ou indivíduos que, em outras ocasiões não teriam a mesma oportunidade de expressão. Essa abertura corajosa, mesmo com antagonismos políticos e posicionamentos divergentes, sem deixar de expressar a própria linha editorial e posição ideológica, ampliou os debates.

Inspirada, talvez, no enfrentamento dos investigadores da Lava Jato, as vozes de minorias como os grupos de mulheres que sofrem agressões, de grupos étnicos ou mesmo de diferentes orientações sexuais, ganharam amplificação.

De algum modo, como uma rede neural movendo-se silenciosamente nos bastidores da história, o Brasil encontrou sua própria face. Tem quem não gostou do que viu, pois nela não há a cordialidade mal-entendida conforme apontava Sérgio Buarque de Holanda e, nem tampouco, se encontrou “o bom selvagem” de Rousseau, para quem o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Olhamo-nos de frente e não temos uma bela face: ela lembra a de Janus, um pouco ali um pouco aqui, uma cara para cada ocasião.

Como todo ser que resiste a abandonar a zona de conforto, a sensação é de que as coisas pioraram: a violência contra mulher explodiu, a pedofilia, os crimes, a irresponsabilidade de grandes empresas com a segurança das pessoas. Podemos nos concentrar num ponto inicial, se isso servir aos historiadores, de quando as mudanças começaram.

Se o preço da liberdade é a eterna vigilância, atualmente no Brasil, é a da desconfiança. A folia do Carnaval está mais para a metáfora de um país que veste fantasias, brinca, ri e comemora nas ruas, nas praças, como se não houvesse amanhã. Mas... na quarta-feira de Cinzas, os mesmos foliões estarão rumando para seu trabalho, vida e compromisso.

Se ainda sobrarem máscaras, não será por muito tempo. Bom Carnaval.