A hora fulminante
Carlos Araújo - carlos.araujo@jornalcruzeiro.com.br
O jovem estudante se sente numa encruzilhada na hora da redação. A prova é decisiva para a sua carreira profissional, para a sua vida. Ele sonha em ser médico, mas também gostaria de ser baterista de banda de rock. A dúvida é a sua maior inimiga nessa hora fulminante.
Batuca com a ponta superior da caneta preta na folha de papel em branco como numa contagem regressiva para começar a escrever.
O tema é o vazamento de óleo que espalha manchas tóxicas nas praias do Nordeste brasileiro. Surpreendente. Não coincide com nenhum dos assuntos que explorou nos treinamentos do cursinho.
E há um tempo programado para dar conta da tarefa. Fazer uma boa redação é o seu caminho de abertura para entrar na faculdade e garantir um futuro. Ou de fechamento da porta.
A tragédia ambiental castiga os pescadores, mata os peixes e animais marinhos, destrói o turismo e causa uma indescritível tristeza coletiva.
Assunto difícil. Exige maturidade em estudos de meio ambiente, tecnologia, relações internacionais. E o jovem só tem 20 anos.
Quem planejou a redação não foi nada sensato, ele pensa. O tema exige um acúmulo de conhecimento impossível para tão pouco tempo de existência. Se até os governos estão perdidos e não sabem o que fazer com a lama nas praias, o que pode dizer um estudante na redação?
O jovem tem consciência dessa desproporção e fica aflito. O formato é o da dissertação e isso ele tira de letra. Abrir o texto com uma tese, argumentar, concluir com uma proposta para a solução do problema.
Argumentar requer domínio das variantes contrárias e favoráveis em torno da questão. E a conclusão só terá sentido se atender aos requisitos de ações que sejam viáveis, práticas, convincentes.
Diante de tamanho desafio, o jovem começa a suar. Sente-se frustrado. Consciente de que não pode escrever qualquer coisa, continua pensando, a caneta entre os dedos batucando no papel em branco. É como se segurasse uma baqueta de bateria no instante de adrenalina que antecede a abertura de um show de rock.
Olha em volta. O semblante é o de quem pede socorro. Outros candidatos já devolveram os seus textos. Ele está ansioso demais. Parece o torcedor de futebol no momento em que o seu time depende da vitória para não ser rebaixado, o tempo avança e o placar ainda está zerado.
Devia ter lido mais, pensa. Dizem que o hábito da leitura facilita na hora de escrever. Mas ler é chato, solitário, sem graça, não ajuda nem a atrair mulher, nem a ganhar dinheiro.
Recorda que há jogadores de futebol que se tornaram milionários por serem craques, e não por meio do estudo. E conhece o caso de um parente que tem mestrado e doutorado e, não encontrando emprego, é obrigado a trabalhar de garçom e de motorista de aplicativo para sobreviver -- e esse parente planeja sair do país.
A realidade mostra que há controvérsias sobre a validade do estudo e o prejuízo da incapacidade de ser doutor, o jovem continua a pensar. Em meio a essas dúvidas, pergunta qual é o sentido de fazer a redação e não encontra resposta.
Faz parte da turma da cerveja, da diversão, dos que curtem cada dia como se fosse o último. Esse perfil pode não ser dos melhores comparado ao hábito dos leitores compulsivos, mas tem a vantagem das histórias vividas para contar.
Aprendeu que a vida também é uma grande escola e acha que viver longe dos livros não significa alienação. Quantos leitores se tornam pessoas desagradáveis, pensa, incapazes de entender uma piada, e são medrosos, sem atitude, guiados pela vontade dos outros, inseguros até para viajar de avião.
Sua mente fervilha. Pensa que essas acrobacias mentais dariam uma redação se não tivesse que se ater ao tema imposto. Até na hora de escrever a liberdade é uma ilusão, conclui, desiludido.
E quem disse que os livros captam toda a essência da vida? Livros também podem disseminar mentiras, distorcer fatos históricos, iludir com verdades imaginárias.
A essa altura das inquietações, ele, finalmente, como se fosse tomado de inspiração repentina, começa a escrever a redação: “O vazamento de óleo capta o espírito do tempo. Substância pastosa, tóxica e de mau cheiro, o óleo emoldura esta época em que a verdade acabou, a política se desintegrou e a esperança está morta.”