Hora marcada para ouvir Beatles
Carlos Araújo - carlos.araujo@jornalcruzeiro.com.br
Você recebe uma notícia com título bombástico nas redes sociais e imediatamente o seu desconfiômetro é acionado com a pergunta: “Isso é verdade ou mentira?”
Para os precavidos, acreditar na mensagem recebida depende de outras fontes de confirmação. Mas muitos outros acreditam na primeira hora e as consequências podem ser desastrosas.
Em tempos de fake news, verdade e mentira travam guerra sem trégua o tempo todo, em todos os níveis e lugares, e este é atualmente o grande desafio da história humana.
As fake news sempre existiram e foram responsáveis por mudanças profundas ao longo da história. O poder delas é tão grande que inspiram o conceito de que nas guerras a primeira vítima é a verdade.
Por exemplo, o recurso ao método das fake news induziu Hitler a acreditar que a invasão das tropas aliadas seria na parte mais estreita do Canal da Mancha e nesse local o exército nazista concentrou a maior parte de suas forças. Mas a invasão ocorreu em outro lugar do litoral francês, na Normandia, o que facilitou a invasão dos aliados. O episódio foi fundamental para mudar o curso da guerra na luta contra o nazismo.
Em outro exemplo também da Segunda Guerra no século XX, durante a batalha de Stalingrado, enquanto em Berlim o rádio comemorava a vitória consolidada, em Moscou as notícias eram de que a Rússia, apesar de castigada, ainda estava de pé e resistia. O desfecho comprovou que Berlim blefava e Stalingrado impunha resistência feroz.
Antigamente, a manipulação de informações era domínio de governos e outras instituições de comando das sociedades, e os efeitos eram enormes. Hoje, graças à tecnologia, a capacidade de criar e compartilhar mentiras está ao alcance de qualquer pessoa, e isso multiplica o tamanho do perigo.
Num ambiente em que tudo se torna motivo de desconfiança, as relações humanas tendem a se deteriorar e os reflexos são sentidos na composição social, política e econômica das sociedades. A tecnologia aproximou o homem do futuro idealizado, mas não o livrou dos instintos primitivos de violência, intolerância, indiferença.
Em contrapartida, nessa atmosfera tóxica, jamais a busca da verdade foi tão valorizada. Encontrá-la requer atenção, vivência, visão crítica, conhecimento. Nem sempre ela está nas aparências, às vezes oculta-se nas frestas, nas sombras, nos silêncios.
Discussões filosóficas criaram a ideia de que a verdade está dentro do poço e o acesso depende de solução para as dificuldades de resgate em terreno com profundidade indefinida. O objetivo é desanimar o perseguidor frágil e fazer com que ele aceite os caminhos mais fáceis -- e na maioria das vezes é isso o que acontece.
Engano filosófico. A verdade nem sempre está dentro do poço. Pode estar nos detalhes da superfície, camuflada na tampa do poço, estilhaçada na diversidade de interpretações da realidade.
Existe a verdade de cada um. Aqui a coisa se complica. Sem dúvida, um único ponto de vista pode ser assimilado de forma diferente, despertando reações opostas, e está instaurado o império da discórdia.
A esperança é que os dois lados possam conviver em harmonia, mas nem sempre isso acontece. É quando a verdade tem determinada forma e conteúdo para alguém, enquanto para outro ela não passa de mentira. A convivência fica difícil, marcada pela intolerância mútua entre as partes, e está aberto o caminho para a distopia mais amarga.
Essa é a marca do nosso tempo. O que fazer? O jeito é cada um buscar a sua verdade e respeitar a verdade do outro. Brigar, jamais. Apesar da distopia, ainda existe a beleza do sol, do verão, da garota a caminho do mar, como cantaram Tom e Vinicius. Melhor contar até dez e ouvir uma canção dos Beatles.
Talvez não haja outra coisa a fazer nessa época de desorientação. Curtir os Beatles é a melhor saída para combater a angústia em tempos de fake news e assim mergulhar na verdade das nossas utopias de amor e paz.