O golpista bissexto

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Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Carlos Araújo - carlos.araujo@jornalcruzeiro.com.br

Aconteceu no último sábado, 29 de fevereiro de 2020. No início da noite eu estava em casa, num momento de descanso e sonolência, quando vi no WhatsApp a mensagem do amigo Marreta, que me surpreendeu:

“Preciso de um favor.” E eu: “Pode falar, tudo bem, esteja à vontade.” “Tenho que fazer um pagamento agora e meu app do banco está dando erro de comunicação”, escreveu Marreta. “Ia ver contigo se você não consegue fazer para mim, que até amanhã te devolvo.”

“Eita. Não uso app. Não sei usar. Você me conhece... analfabeto digital... e agora, quem poderá me ajudar? Ainda estou no tempo de pagar boletos no caixa da lotérica ou do banco... nem no caixa eletrônico eu sei pagar... e agora?” E acrescentei: “Nem tenho vergonha de reconhecer meu analfabetismo digital. Desculpe. Eu não uso nem o aplicativo do banco que permite ver o saldo da conta no celular. Acho que teria que ter esse aplicativo e eu não sei instalar...”

Nesse instante, Marreta sugeriu que eu fizesse o pagamento no caixa eletrônico. E eu respondi com outra opção, a de sacar e levar o dinheiro em mãos na casa dele. E justifiquei: “Não sei usar o caixa eletrônico também pra pagamento. Já fiz isso na agência há muito tempo e com orientação do funcionário. Mas posso sacar e te levar o dinheiro. Resolve assim?”

Marreta ainda insistiu na opção do depósito via caixa eletrônico. Citou o nome do banco e ainda decretou: “Depósito imediato.” Eu repeti que não sabia operar o caixa eletrônico para depósito e reafirmei que a melhor alternativa seria levar o dinheiro em mãos. Só então perguntei qual era a dificuldade, se ele estava viajando, e não obtive resposta. Quase constrangido por não poder ajudá-lo da forma que ele pedia, eu ainda disse: “Sou do século passado. Infelizmente. Mas é que não tenho tido necessidades dessas coisas modernas. Comportamento de pobre. Só uso dinheiro, cartão de débito e boletos. E todos os boletos são pagos no caixa... caixa físico.”

Decidido a ajudá-lo de qualquer maneira, insisti: “Posso sair agora, ir sacar, e levar o dinheiro em mãos pra você. Só que paguei o aluguel hoje, pode ser que o limite de saque do dia esteja bem restrito por isso.”

Até aqui eu estava certo de que falava com o Marreta real. Foi quando tive a atenção despertada pelo grupo de “Amigos do bar” logo abaixo do zap de Marreta. O grupo estava agitado com uma sequência de mensagens. Abri o zap da turma do bar e lá estavam os amigos Tucano, Mavi, Ítalo e Dedalus, em conversas que tinham tudo a ver com o meu diálogo com Marreta. Eles também tinham recebido mensagens de Marreta com pedidos de pagamento.

Dedalus, o administrador do grupo, convocou: “Marreta, tudo bem?” Sem resposta. Marreta havia saído do grupo anteriormente e ninguém sabia disso nesse momento. “Estranho”, escreveu Mavi. E Ítalo: “Oi, Dedalus, será que é o Marreta mesmo?” Dedalus alertou: “Tem um cara falando comigo. É golpe.” Ítalo compartilhou: “Comigo também. Quer que eu faça um pagamento.” Mavi retornou com a mesma queixa. Dedalus disse que “clonaram” ou “sequestraram” o celular de Marreta.

Tucano confirmou: “Dedalus, clonaram o WhatsApp do Marreta. Acabei de falar com ele. Ele está tentando resolver. O cara pede para transferir dinheiro etc. etc., o velho golpe de sempre.”

Seguiram-se as avaliações do susto. Mavi disse que iniciou conversa com o golpista e ligou para se certificar se o Marreta com quem conversava era real. Dedalus perguntou se ele efetuou pagamento e a resposta foi negativa.

Aqui, entrei na conversa: “Eu também recebi o contato. Não cai no golpe porque sou analfabeto digital. Não uso aplicativo de banco. A mensagem vem com a foto do Marreta. Parece conversa real. Assustador.”

Vieram os “kkks” e o clima de brincadeira. Mavi quis saber se haveria problema posterior e Dedalus disse que “no máximo clonaram a gente”. Incrementando o tom de comédia, Ítalo afirmou que transferiu uma quantia para o golpista e esperava que Marreta tivesse dinheiro para indenizá-lo.

“O pior é que o dinheiro que transferi eu vou precisar para pagar uma conta na segunda. Vcs não podem me ajudar?”, disse Ítalo. Dedalus pediu que Ítalo mandasse a conta.

Eu então me censurei: “E eu pedindo desculpa ao Marreta por não poder ajudar.... até falei que sacava o dinheiro e levava em mãos pra ele... e ele não respondeu a isso... não era ele então... até comentei com ele que o sufoco para fazer um pagamento daria uma crônica...”

Ainda refleti: “Será que eu sou fake também? Será que eu sou eu? Será que eu existo? Que doideira.” E, para relaxar, entrei na comédia: “É você mesmo que está falando, Ítalo? Agora temos que iniciar as conversas com senhas, tipo fazer uma pergunta que eu sei que só você pode responder.”

Depois, Marreta (o verdadeiro) me contou que chegou ao ponto de envolver o celular de sua mulher na confusão. Ela ficou sem WhatsApp e o filho dele ligou para o golpista, que liberou o zap retido.

“Uma história realmente surreal”, disse Marreta. “O golpista não consolidou o crime. Ao menos ninguém ligou para cobrar o dinheiro emprestado. E você acabou enrolando o golpista sem querer. Mas ao final, a realidade venceu!”