Os vivos e os mortos na esquina do mundo (II)

Por

Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Crédito da foto: Arte Lucas Araújo

Carlos Araújo - carlos.arujo@jornalcruzeiro.com.br

Kafka e Poe reapareceram na mesma esquina de onde tinham fugido de mim na noite anterior. Surgiram do nada, como se tivessem sido transplantados pela máquina do tempo. Eu os vi com a diferença da fração de um piscar de olhos. E desta vez me aproximei rápido, antes que pudessem fugir novamente. Eu seria capaz de retê-los pelos colarinhos, mas não foi preciso recorrer à força.

Nesta noite, também estavam acompanhados de uma terceira criatura: Borges, o poeta e contista argentino que igualmente idolatrava os dois mestres e os tinha como influência para uma obra original marcada por espelhos, espadas, tigres, sonhos, bifurcações, bibliotecas, loterias, duelos.

Tive a sensação de encontrar velhos amigos. Poetas e autores de contos e romances se deixam conhecer mais pelo que escrevem do que pelo que dizem ou possam fazer em termos práticos. Eu os conhecia por meio dos seus livros e tinha pouco a perguntar sobre as obras que legaram à eternidade.

Os três autores poderiam ter me ignorado. Eu, um anônimo, diante de três clássicos da literatura mundial. Que significado a minha presença poderia ter para eles? Nenhum. Mas foram generosos comigo, ao ponto de ao menos me ouvirem.

O diálogo transcorreu em inglês e alemão.

Perguntei a Kafka o que ele achava da atitude do seu amigo Max Brod, que não atendeu ao seu pedido para que queimasse toda a sua obra. Se Max Brod o tivesse obedecido, o mundo não teria conhecido “O processo” e “O castelo”. Kafka esboçou um ar de enfado e não respondeu, talvez porque estivesse cansado dessa questão que atravessa o tempo.

Como figuras que viveram entre os séculos XIX e XX, indaguei aos três se estavam atualizados sobre a evolução histórica da humanidade após as suas mortes e se podiam avaliar por que o mundo ainda patina entre a barbárie e a intolerância.

Borges se adiantou:

“O grande problema das sociedades é o homem. Desde Caim, o homem elimina o outro para conquistar poder e glória. É a lógica da psicopatia. Caim foi o protagonista do ato criminoso que deu origem a todas as guerras.”

“Mas o homem evoluiu em conhecimento, ciência, tecnologia”, ponderei. “Em meio a essas maravilhas, por que o sofrimento e a dor continuam a castigar os povos em todo o mundo?”

“O problema é que o conhecimento é empregado na lógica de movimentação do poder”, interveio Poe. “É a formula de Caim se reproduzindo o tempo todo. De qualquer maneira, o que explica a contradição entre gastar mais em armas do que na erradicação da fome e de doenças? Como explicar o desprezo dos grandes impérios pela África sem petróleo, enquanto fazem da disputa por áreas petrolíferas do Oriente Médio a mãe de todas as guerras?”

Kafka, que se mantinha calado até este momento, enfim falou:

“A grande desilusão tem origem na expectativa de que a melhoria de recursos poderia elevar o espírito humano. Mas isso não acontece. Os instintos primitivos do homem são os mesmos, agora e sempre, desde os tempos das cavernas. A invenção da eletricidade, por exemplo, ao mesmo tempo que melhorou o progresso humano, não extinguiu os instintos selvagens que levam os indivíduos a roubar, torturar, assassinar, explorar o outro em benefício próprio.”

“E tudo isso é matéria de literatura”, disse Borges. “Orwell traduziu o sombrio alvorecer da sociedade moderna em ‘1984’. No campo da loucura, ‘Dom Quixote’ cumpre uma função importante. E até mesmo um brasileiro, Machado de Assis, criou uma joia de delírio com o Simão Bacamarte de ‘O alienista’. Nessa obra, Machado foi gênio e profeta. Descreveu o Brasil de ontem, hoje e sempre, o Brasil perdido entre a maluquice e a intolerância. É por isso que muitos governos censuram e queimam livros. Reagem assim porque essas obras, sem disfarce, desnudam o potencial de brutalidade e selvageria do poder.”

“Qual é a saída? Há esperança?”, perguntei.

Poe, Kafka e Borges se entreolharam, mas não responderam. Nem sempre existem respostas para certas questões.

Houve tempo para perguntar por que vieram do mundo dos mortos para o universo dos vivos. Kafka se encarregou de decretar:

“Não há mais diferença entre esses mundos. Os vivos também já existem como mortos. Só não se deram conta disso ainda.”

E nesse instante, novamente na fração de um piscar de olhos, os três fantasmas desapareceram.