A necessária revitalização do Centro
Decadentes desde a década de 1990, em virtude das mudanças de hábitos de consumo que coincidem com advento dos shoppings no Brasil, as regiões centrais de grande parte das cidades de médio e grande porte se tornaram território de coexistência de consumidores, no horário comercial, e pessoas em situação de rua, especialmente no período noturno.
Em Sorocaba, essa situação não é diferente e, segundo moradores e lojistas, piorou durante a pandemia do novo coronavírus -- com o agravamento da crise econômica e o longo período em que as lojas ficaram fechadas.
Diante deste cenário, em que o problema social da população de rua fica evidente, são recorrentes as promessas de projetos de revitalização do Centro por candidatos à Prefeitura. Não apenas no pleito deste ano. Presidente da Associação Comercial de Sorocaba (Acso), o empresário Sérgio Reze, de 84 anos, se autodeclara uma “memória viva do Centro”, e afirma que, ao menos nos últimos 20 anos, dezenas de propostas de recuperação do Centro foram aventadas por postulantes ao cargo de chefe do Executivo. “Todo mundo diz ter a solução, mas até hoje ninguém nunca fez nada efetivo para melhorar”, comenta.
Lembrando da tranquilidade que o Centro oferecia às famílias na época em que ele era criança -- na infância morou rua Padre José Manoel de Oliveira Libório --, Reze reconhece que a questão da revitalização do Centro é complexa e vai além das possibilidades da arquitetura e do urbanismo. “É um problema eminentemente social”, defende.
Revitalização urbana
Arquiteta e integrante do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) -- Núcleo Sorocaba, Maíra Sfeir concorda com Reze. “Um problema dos gestores públicos é não entender o que é revitalização urbana. Não é só cuidar do jardim, trocar piso de calçada ou colocar uma escultura. Isso é maquiar algo. Revitalização é uma intervenção muito mais complexa, com a vários elementos atuando de forma integrada”, assinala. “Revitalização envolve segurança, mobilidade, preservação do patrimônio”, afirma.
A sensação de insegurança na região central é a principal causa, segundo o presidente da Acso, que desestimula os comerciantes a estender o horário de funcionamento de suas lojas ou até mesmo investir na criação de atrativos para o período noturno, como bares e restaurantes. “Você se sente seguro de ir ao Centro à noite? É por isso que as pessoas preferem ir ao shopping”, constata Reze.
Maíra comenta que a segurança é um conceito muitas vezes mal compreendido no debate sobre revitalização de áreas degradadas e, frequentemente confundido com o aumento da vigilância e da repressão policial. A arquiteta cita a ideia de “olhos da rua”, desenvolvida pela ativista social e escritora canadense Jane Jacobs, pioneira a defesa da criação de cidades amigáveis. “Não precisa ter cinquenta policiais na rua e sim cinquenta pessoas e um policial. Quem traz segurança são os ‘olhos da rua’, é a presença da população”, comenta.
Doutora em Geografia Humana pela USP e professora de Geografia na UFSCar Campus Sorocaba, Rosalina Burgos, atesta que o esvaziamento noturno é um dos principais motivos da degradação das áreas centrais de grandes cidades mundo afora, incluindo Sorocaba.
A pesquisadora destaca que ações geralmente executadas pelo poder público são de manutenção e recuperação e não podem ser confundidas como um projeto de revitalização. “Revitalização está muito ligado ao propósito de retomar uma qualidade que havia e deixou de existir e isso deveria permitir enfrentar os problemas sociais em uma sociedade estruturada em desigualdades sociais”.
Para Maíra Sfeir, um exemplo evidente da degradação provocada pela ausência das pessoas é o entorno do antigo Fórum Velho, na Praça Frei Baraúna. O imóvel histórico era sede da Oficina Cultural Grande Otelo -- espaço voltado à apresentações e formação artística e cultural que atraia centenas de pessoas diuturnamente -- mas foi fechado en 2014 para reformas, nunca concluídas, até serem abandonadas pelo governo estadual. Desde então, o imóvel tem sido alvo recorrente de invasão de moradores em situação de rua e usuários de drogas.
Sérgio Reze lembra que em 2019 a Acso formalizou ao governo do Estado o pedido de cessão em comodato do imóvel do Fórum Velho. O imóvel ficaria sob a responsabilidade da associação, que, em contrapartida, se responsabiliza por realizar a restauração, revitalização e a reutilização do espaço. Apesar da proposta não onerar o Estado, o governo estadual até o momento não deu nenhuma devolutiva à demanda.
O empresário afirma que a elaboração de um plano de revitalização do Centro envolve diversas áreas e defende que a administração municipal deve promover a discussão junto a especialistas independentes. A revitalização do Centro tem sido discutida, inclusive com a participação de especialistas, há várias gestões. Em meados do ano passado, a Prefeitura de Sorocaba chegou a realizar uma audiência pública sobre a revitalização do Centro, por região onde passam diariamente mais de 100 mil pessoas, quando foram apresentados os resultados de estudos levantados por câmaras temáticas formada por representantes da sociedade civil. Apesar de ter sido elaborado uma série de propostas, divididas em quatro eixos, Espaço Público, Patrimônio Histórico, Mobilidade Habitação, o plano não avançou.
Região tem atrativos históricos e culturais
O centro não é ocupado por consumidores à noite porque não oferece atrativos ou não possui atrativos porque não é frequentado pelas pessoas? Para a arquiteta Maíra Sfeir, a resolução desse dilema deve ser liderada pelo poder público, que tem o papel de desenvolver políticas para “virar a chave” e incentivar investimentos que ajudem a inverter o esvaziamento noturno que causa a degradação dos centros.
Para além de bares, cafés, restaurantes ou mesmo lojas com horário estendido, Maíra destaca que o Centro tem potencial de receber uma série de atrativos com apelo na história e na cultura. Membro do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico, Turístico e Paisagístico de Sorocaba (CMDP), a arquiteta assinala que a maior parte dos imóveis tombados está no Centro e sua conservação e uso têm o potencial de alterar todo o seu entorno.
Com a exceção da Biblioteca Infantil Municipal, na rua da Penha, e a Fundec, na rua Brigadeiro Tobias, ambos os prédios tombados que sediam atividades culturais à noite, diversos imóveis da região Central que hoje estão abandonados têm potencial para serem transformados em atrativos a visitantes. Maíra cita o complexo histórico que abrange as oficinas da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, passando pela estação ferroviária e o Palacete Scarpa. “Imagina que percurso histórico e cultural poderia ser transformado naquela região”, sugere.
A professora Rosalina Burgos, que para defender o seu pós-doutorado realizou pesquisa de campo em cidades da Europa e da América do Sul, cita Montevideu, no Uruguai como um exemplo de interessante projeto de revitalização de seu centro histórico. Ela menciona especialmente o entorno do mercado municipal da cidade, por meio de uma interseção entre comércio e o setor turístico-cultural. “O centro muitas vezes é entendido como exclusivo para comércio e serviço, desconsiderando possibilidades de cultura e lazer, mas também de moradia”, afirma, dizendo que uma estratégias seria a criação de corredores culturais com agenda de eventos ao fim da tarde, atraindo o público consumidor e trabalhadores ao fim do expediente.
Auge e decadência
O Centro de Sorocaba, assim como de grande parte das cidades brasileiras, foi o berço da cidade e espaço de efervescência das atividades sociais até a década de 1990. A praça Cel. Fernando Prestes, que na metade do século 20 foi palco do “footing” e chegou a abrigar três clubes sociais -- o União Recreativo, Sorocaba e Circolo Italiano --, tornou-se espaço transitório durante o dia e ermo à noite.
Rosalina Burgos explica que a decadência do Centro, a exemplo de outras cidades de porte semelhante foi fortemente influenciada por uma mudança de estilo de vida das pessoas em relação ao uso dos espaços. “É uma tríade articulada: shopping center, vias expressas de trânsito rápido e condomínios fechados”, comenta.
Esse novo estilo de consumo, marcado por busca de maior conforto, segurança e velocidade, combinado com a ampliação das classes médias, também acabou deslocando a centralidade para outros corredores da cidade, como a av. Antonio Carlos Comitre, no Campolim; e avenida Itavuvu, que cruza toda a zona norte e muitas outras. (Felipe Shikama)