Eles são os ‘olhos’ de deficientes visuais
Caminhar pelas ruas, pegar um ônibus, ir ao trabalho. Você já imaginou fazer tudo isso com os olhos fechados, sem enxergar? São tarefas simples, do dia a dia, mas que trazem dezenas de obstáculos a cada passo. Essa é a realidade dos deficientes visuais. E apesar das dificuldades, as pessoas com deficiência visual passaram a ter cada vez mais mobilidade na realização dessas tarefas, principalmente quando contam com o apoio de um cão-guia.
Mais do que companheiros, os cães-guia são os olhos de quem não pode enxergar. É graças a eles que as pessoas cegas ou com baixa visão têm mais segurança, qualidade de vida, liberdade e autonomia no dia a dia. Além de contribuir com o bem-estar de seus tutores, principalmente na realização de atividades externas, os animais também promovem a inclusão social das pessoas com algum tipo de deficiência visual.
O estudante de Direito Murilo Delgado, 25 anos, e sua companheira Baduska, 4 anos, são um dos exemplos que podem ilustrar essa realidade. A chegada de Baduska, em 2018, foi um marco na vida de Murilo. “Existe uma vida antes e depois do cão-guia”. Murilo nasceu com deficiência visual e sempre gostou de ser independente, o que se tornou mais fácil com a companhia da amiga de quatro patas. “Ela me trouxe mais mobilidade, segurança, confiança e autoestima. O cão-guia gera mais empatia. As pessoas deixam de te ver como um coitado e passam a te ver como uma pessoa. É legal ver o efeito que os animais causam nas pessoas”.
Há pouco mais de dois anos, Baduska passou a acompanhar Murilo em quase todas as suas atividades, como ir ao trabalho, pegar um ônibus, passear e caminhar pelas ruas. Desde então, os dois criaram relação mútua de companheirismo e amizade, já que a interação entre humano e animal é fundamental para que o deficiente visual exerça plenamente sua autonomia. “O cão não faz tudo sozinho. A gente é como o cérebro e o cão é como se fosse nossos olhos. Precisamos sentir o que ele passa”. Hoje, o estudante de Direito já não imagina sua vida sem a companheira. “Para mim, a Baduska foi sensacional. Ela mudou completamente a minha vida”.
Luta recente
Mesmo com todos esses benefícios, a história do auxílio dos cães-guia é recente no Brasil. O número de animais ainda é escasso no País, apesar de terem sua importante atividade regulamentada por lei. Ainda não existem estatísticas oficiais de cães-guia, mas estima-se que sejam mais de 200 animais em atividade em todo o território nacional. Basta olhar ao redor para perceber que são poucos em ação, diante da necessidade de mais de 6,5 milhões de brasileiros com alguma deficiência visual, conforme os dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Uma das pioneiras a lutar para que outras pessoas com deficiência visual também possam voltar a enxergar pelos olhos de um cão-guia é a advogada Thayz Martinez. Ela e seu primeiro cão-guia, o Boris, ficaram conhecidos ao protagonizar a luta pelo direito do deficiente visual em viajar ao lado de seu cão no transporte público de São Paulo. Isso porque Thayz e Boris foram barrados duas vezes no metrô, que alegava ser proibido transportar animais nos trens. Esse impedimento foi parar nos tribunais e depois de seis anos de “briga”, a justiça deu ganho de causa ao cachorro, garantindo o livre acesso de cães-guia a qualquer local de uso coletivo e meios de transporte.
Ao longo dessa caminhada, Thayz e Boris enfrentaram diferentes obstáculos. “O processo foi bem desgastante. Primeiro conseguimos uma liminar. Mas pensei: ‘já que é pra passar por tudo isso, que seja por algo maior’. A decisão saiu só seis anos depois. Eu fiz a minha própria defesa, com o Boris do meu lado. Agora, ao olhar para trás, fica só a vitória, que foi muito importante. Hoje, fico muito feliz ao entrar no metrô e ouvir as recomendações de segurança dos cães-guia”, comemora.
Boris, que veio dos Estados Unidos, foi o primeiro cão-guia de Thayz. O labrador americano chegou ao Brasil em abril de 2000. Na época, conta, havia menos de 10 cães-guia em todo o País. A advogada, que perdeu a visão aos 4 anos, lembra que a chegada de Boris foi a realização de sonho de infância. “Quando tinha 7 anos, uma professora me contou sobre esses cães. Brinco que o meu sonho de criança era ser adulta para ter meu cão-guia ao meu lado o tempo todo. Eu sentia falta de poder andar livremente pelos lugares, porque tinha medo de bater o rosto em obstáculos aéreos, como galhos de árvores. Com a chegada do Boris, eu ia para todo lugar. Era uma alegria que transbordava”.
Mais do que autonomia, Boris proporcionou benefícios para a vida de Thayz. “Eu ainda me surpreendo com as transformações que o Boris trouxe na minha vida. Trabalhei para que a lei federal do cão-guia fosse aprovada. Também fundei uma ong para que mais pessoas pudessem ter um cão guia”. Depois de Boris, que se aposentou em 2008, veio o Diesel, também americano. Agora, Thayz conta com a companhia da brasileira Sophie. Segundo Thayz, todos eles a ensinaram coisas importantes sobre relacionamento, amor, dedicação, confiança e amizade.
Instituto Magnus prepara os animais para a missão
Para contribuir com a democratização do cão-guia, algumas entidades têm trabalhado para que essas demandas sejam atendidas. É o caso do Instituto Magnus, em Salto de Pirapora, na Região Metropolitana de Sorocaba (RMS). Desde novembro de 2015, a instituição realiza o treinamento e a entrega dos cães, além de atividades, como palestras informativas e educativas, vivências, dinâmicas em grupo e ações de divulgação para conscientização e engajamento à causa.
Foi pelo Instituto Magnus que Thays obteve seu terceiro cão-guia. Também foi por meio do instituto que Murilo realizou o sonho de ter um cão-guia. “Eu já tinha tentado antes, mas nunca consegui. Em 2018, fiquei sabendo do projeto e me inscrevi, meio descrente. E depois de passar por um período de adaptação e treinamento, recebi a Baduska. Estamos juntos desde então”. Hoje, Murilo também faz parte da equipe de colaboradores da instituição e ocupa o cargo de assistente de relacionamento do Instituto Magnus. “É muito gratificante estar trabalhando para que outras pessoas também possam ter essa oportunidade”.
A entidade de assistência social visa promover a inclusão social, a convivência familiar e comunitária e a cidadania das pessoas com deficiência visual e em situação de vulnerabilidade. “O nosso trabalho vai muito além de treinar cães-guia. O Instituto Magnus é o maior programa social de cães-guia da América Latina. Temos uma estrutura completa para fazer esse treinamento, desde o nascimento do filhote até a entrega do cão treinado para a pessoa com deficiência visual”, destaca Thiago Pereira, gerente-geral do Instituto Magnus.
Hoje, o instituto conta com 20 cães-guia formados, 16 cães em treinamento no canil, 40 em fase de socialização e 10 filhotes na maternidade, que ficarão por um período em casas de famílias voluntárias socializadoras. “Esse processo faz parte do treinamento. Essas famílias cuidam do filhote e o ensinam durante um ano como é viver socialmente. Sem elas não existe cão-guia”, frisa Thiago. Segundo ele, o treinamento completo de um cão-guia leva pouco mais de um ano e meio. “É um processo complexo, pois o cão precisa seguir algumas regrinhas por estar exposto a lugares públicos”.
Porém, Murilo reforça que não são essas questões de disciplina que impedem os tutores de dar muito amor aos animais, já que eles vivem e brincam como um cachorro normal assim que o equipamento é retirado. “A gente mima muito, porque é o amor, o carinho e o cuidado mútuo que move a nossa relação. A gente cuida deles e eles cuidam da gente”. Para os próximos anos, ressalta Thiago, a meta do Instituto Magnus é entregar de 18 a 24 cães-guia. “Hoje, ter um cão-guia se tornou sonho possível no Brasil. É gratificante poder transformar a vida das pessoas”, finaliza. (Jéssica Nascimento)