São Paulo facilita acesso ao canabidiol
Especialistas comentam lei que prevê distribuição gratuita de remédios à base do composto pelo SUS
O acesso a medicamentos à base de canabidiol ficará mais fácil, desburocratizado e sem necessidade de judicialização no Estado de São Paulo. Essas devem ser as principais contribuições da lei 17.618, de 31 de janeiro de 2023, segundo especialistas ouvidos pelo jornal Cruzeiro do Sul. A norma, sancionada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), prevê a distribuição gratuita desses remédios pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A legislação é de autoria dos deputados estaduais Caio França (PSB), Erica Malunguinho (Psol), Patrícia Gama (PSDB), Marina Helou (Rede), Sergio Victor (Novo), Adalberto Freitas (PSDB), Isa Penna (PCdoB) e Monica da Mandata Ativista (Psol). A sua publicação ocorreu após a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) tê-la aprovado em dezembro de 2022.
O dispositivo jurídico institui a política estadual de fornecimento dessas medicações. Com isso, autoriza unidades de saúde públicas e privadas conveniadas ao SUS a distribuir medicamentos à base de canabidiol, em associações com outras substâncias canabinóides. Isso inclui o tetrahidrocanabidiol. A medida tem caráter excepcional e vale apenas no Estado de São Paulo. Os beneficiados serão pacientes com doenças cuja ação dos remédios diminua, comprovadamente, as consequências clínicas e sociais dessas patologias.
Ainda conforme a norma, o intuito da política é “adequar a temática do uso da cannabis medicinal aos padrões de saúde pública estadual, mediante a realização de estudos e referências internacionais”. Há, também, outros dois objetivos específicos. O primeiro é diagnosticar e tratar pacientes cuja terapêutica com a cannabis medicinal possua eficácia ou produção científica que incentive o tratamento. Já o segundo é promover políticas públicas de debate e propagação de informação sobre o uso da medicina canábica.
Nesse sentido, a legislação preconiza a organização de palestras, fóruns, simpósios, cursos de capacitação de gestores outras ações necessárias a respeito do tema. Ainda estabelece a realização de parcerias público-privadas com entidades, preferencialmente, sem fins lucrativos, para o desenvolvimento dessas iniciativas.
De acordo com a lei, a política instituída será responsabilidade da Secretaria da Saúde. A pasta definirá as competências em cada nível de atuação. A secretaria, igualmente, deverá criar uma comissão de trabalho para implantar as diretrizes no Estado. Esse grupo será formado por técnicos e representantes de associações sem fins lucrativos de apoio e pesquisa à cannabis, bem como de associações representativas de pacientes. A norma entra em vigor 90 dias após a data da sanção.
Uso dos medicamentos
Segundo o otorrinolaringologista André Freitas Cavallini, especialista em medicina canábica, utiliza-se os medicamentos, principalmente, nos tratamentos de doenças psiquiátricas e neurodegenerativas. As mais comuns são epilepsia refratária, alzheimer, mal de Parkison, ansiedade e depressão. Dependendo do caso, eles ainda são indicados para crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) que têm problemas comportamentais.
Além disso, conforme Cavallini, diretor de uma clínica de Sorocaba focada em tratamentos à base de cannabis, os remédios também agem contra dores crônicas. De acordo com ele, nesses pacientes, eles apresentam resultados melhores do que os tradicionais e causam menos dependência. “Muitos (pacientes) são viciados em medicamentos opióides, à base de morfina, por exemplo, e outros tradicionais. Muitas vezes, eles geram tolerância a essas medicações e precisam de doses maiores. A cannabis surgiu como alternativa para o abuso dessas medicações, ao mesmo tempo em trata a dor também”, informou.
De acordo com o médico, as medicações atuam diretamente no sistema endocanabinoide, responsável pela regulação e equilíbrio de vários processos fisiológicos. São eles: sono, humor, memória, apetite, reprodução e sensação de dor. “É como um mensageiro entre o sistema imunológico e o nervoso central”, explicou. Esse controle é feito por dois principais tipos de endocanabideoides endógenos, também chamados de canabinoides (moléculas), produzidos pelo próprio sistema. Além do organismo, os canabinoides são encontrados nas substâncias derivadas da cannabis usadas nos remédios. Tanto as moléculas geradas pelo corpo, quanto os elementos provenientes da planta se ligam e ativam os dois receptores canabinoides do sistema nervoso. Assim, ao entrar em contato com os compostos químicos, eles reagem com as proteínas. Dessa forma, proporcionam condições naturais para o organismo se beneficiar das propriedades terapêuticas dos canabinoides e lutar contra doenças.
Cavallini diz que os canabinoides oriundos da cannabis incentivam, inclusive, o sistema endocanabinoide a produzir mais moléculas. Com isso, a ação de combate a patologias se intensifica. “Quando tem essa maior liberação desses endocanabinoides, eles acabam agindo em várias áreas do nosso organismo, fazendo essa modulação dos neurotransmissores do nosso corpo”, elucidou. Na prática, em quadros de epilepsia, por exemplo, esse processo reduz o excesso de neurotransmissores causadores do problema e ativa aqueles de defesa. Com isso, há o controle do choque elétrico, segundo o especialista. Já no caso de ansiedade, auxilia no controle do transtorno e no aumento do foco.
Polêmica
Para o otorrinolaringologista, a polêmica acerca das medicações à base de canabidiol está relacionada ao fato de a cannabis ser amplamente consumida de forma recreativa. Segundo ele, os usuários buscam, geralmente, os efeitos psicoativos causados, especialmente, dois elementos da planta: canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC). Por isso, considera Cavallini, muitas pessoas acreditam que a ingestão dos medicamentos pode desencadear efeitos chamado por ele de “chapação”, com alterações no estado de consciência do usuário. No entanto, isso não acontece, pois os níveis dessas substâncias nos remédios são regulamentados pelos órgãos de saúde. “Os extratos à base de cannabis são, basicamente, (formados por) CBD, com até 0.3% de THC. O CBD não causa esse efeito de ‘chapação’”, elucidou. “Tem muito preconceito porque tem muita gente que acha que damos a planta in natura para os pacientes.
Cuidado
Para o psiquiatra Fábio Scaramboni Cantinelli, especialista em psiquiatria de álcool e drogas, a lei é positiva, mas é preciso cuidado. Segundo ele, como esses medicamentos são novos, as pesquisas científicas quanto à sua atuação e eficácia estão em andamento. Por isso, completa ele, não são indicados para todos os problemas psiquiátricos. Assim, é essencial a consulta ao médico, para avaliação de cada caso individual. “É isso o que a boa prática médica pede “, assinalou.
Cantinelli destaca que o uso sem critério pode ter consequências negativas, a exemplo de efeitos colaterais.“É um recurso muito nobre, que tem os seus usos, que vai alcançar um potencial de benefício muito grande nos pacientes, mas que precisa da devida cautela”, reforçou. Ainda conforme ele, por conta desses problemas, a conduta inadequada pode ser motivo para inviabilizar a utilização dos próprios remédios. “Se não tiver o devido cuidado, pode ‘estragar’ o recurso”. Portanto, de acordo com ele, a distribuição deverá ser controlada de maneira eficiente, para prover o acesso apenas a quem realmente precisa. “Aumenta a responsabilidade dos órgão governamentais no sentido de indicar quem poderá ou não fazer o uso dessas medicações”, concluiu.
OAB: Desburocratização é grande avanço
Conforme Alan Martinez Kozyreff, presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da subseção de Sorocaba da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a lei irá agilizar e desburocratizar o processo de liberação e acesso efetivo às medicações.
Kozyreff informa que, hoje, no Brasil, para conseguir o produto, o paciente precisa entrar na Justiça. Isso porque o cultivo e consumo da cannabis, planta da qual o canabidiol deriva, são proibidos no País. Agora, ao menos em São Paulo, a judicialização não será mais necessária. “Isso é um grande avanço”, opinou.
Porém, conforme o advogado, para ser contemplado, o solicitante deverá comprovar, por meio de laudo médico, a necessidade do medicamento. Além disso, também terá de provar não ter condições de adquiri-lo. De acordo com o especialista, caberá à Secretaria da Saúde analisar os pedidos e aprová-los ou negá-los. Em caso de indeferimento, por motivos diversos, a pessoa continua respaldada pelo Poder Judiciário. “Pode ingressar com ação para discutir essa decisão da secretaria de, eventualmente, não ter sido contemplado”, disse. “O Judiciário sempre vai poder regulamentar essas decisões”.
Importação
Atualmente, nenhum produto à base de canabidiol é fabricado ou está disponível no Brasil. A importação é feita pelo próprio paciente e, por isso, demora. Agora, de acordo com o integrante da OAB, o governo estadual será responsável pela compra. Com isso, haverá estoque, e o remédio chegará mais rápido ao paciente. “Ele já terá a medicação dentro do Estado de São Paulo”, destacou.
Kozyreff ressalta que, como ocorre habitualmente, serão permitidos apenas medicamentos registrados e autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O País já dispõe de uma gama permitida pelo órgão. O registro de novos deve ser solicitado à agência exclusivamente pela fabricante. (Vinicius Camargo)