Violência doméstica deixa cicatrizes que nem o tempo consegue curar

Mulheres contam como é conviver com os traumas após sofrer agressões físicas e psicológicas dos companheiros

Por Vanessa Ferranti

Além de ser abusada sexualmente, M.B.V.Y teve a mão fraturada pelo ex. Apesar de passar por quatro cirurgias, hoje ela é deficiente física. O pior de tudo, no entanto, é o sofrimento psicológico, que não acabou

 

Flashes das cenas de agressão ainda insistem em aparecer na mente da técnica de enfermagem de 48 anos. Um ano e quatro meses após o crime, ainda é doloroso conviver com as lembranças da violência doméstica -- cometida pelo ex-namorado. Atitudes que quase tiraram a vida da mulher. V.A.E.Q. foi atingida por 20 golpes de faca. Hoje, é possível enxergar as cicatrizes no corpo, nas mãos, braços e pescoço. No entanto, há, ainda, marcas mais profundas, invisíveis, difíceis de superar.

Tudo aconteceu em agosto de 2022, depois de três meses de relacionamento. O casal se conheceu no trabalho, há cerca de 10 anos, mas não era próximo. Ele, decidiu então, fazer contato pelas redes sociais. Naquele momento, uma história, que a princípio parecia ser de amor, começava. Porém, após a vítima ter conhecimento sobre uma traição, o homem não aceitou o fim do relacionamento e atacou a mulher.

“Ele me deu murros, quebrou o meu nariz e puxou meu cabelo. Me levou para a cozinha e começou a me esfaquear. Ele falava ‘eu te amo’, você é minha e eu vou te matar’”, relatou V.A.E.Q. A vítima conseguiu se salvar. Foi socorrida e o homem preso em flagrante. Depois de ficar internada e passar por fisioterapia, o corpo foi curado, mas os traumas insistem em reaparecer. “Além de tudo o que você vive, a sociedade não te abraça. Eu precisei sair do trabalho, porque não estou conseguindo voltar para a minha vida social”.

A vida de M.B.V.Y, de 47 anos, moradora de Sorocaba, também mudou completamente depois de ter sofrido violência doméstica. Como é comum, o homem não aceitou o fim do relacionamento e invadiu o apartamento da ex-companheira. Ela sofreu abuso sexual e teve a mão fraturada. Passou por quatro cirurgias e hoje é deficiente física. “Conseguiram prender ele, mas como [a agressão] foi no meu quarto eu sempre acordava de madrugada, desesperada e acendia todas as luzes para ver que eu estava na minha casa, que estava segura”, relembrou.

Números crescentes

Os relatados ouvidos pela reportagem são semelhantes às histórias de milhares de mulheres vítimas de violência doméstica em todo o Brasil. Segundo a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), três a cada dez brasileiras já foram vítimas de violência doméstica. Somente entre janeiro e agosto de 2023, 181 mulheres foram vítimas de feminicídio no Estado de São Paulo, 18% a mais do que no mesmo período do ano passado, quando 153 casos foram constatados.

O número de registros de ocorrências de algum tipo de violência contra mulher também teve um aumento de 47% até outubro deste ano no Estado, comparado ao mesmo período do ano passado. Segundo a delegada Alessandra Silveira, da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Sorocaba, as vítimas têm tido mais coragem para denunciar. “Antes aconteciam muitos casos, as vítimas sofriam violência e não procuravam a delegacia, não faziam registro por medo do agressor, por medo de fazer o registro e ter que voltar para casa, por não ter uma proteção, por vergonha, por muitos motivos, inclusive, por depender do marido e achar que não vai receber apoio para sair dessa situação. Hoje em dia, com o esclarecimento de que ela deve procurar a delegacia e vai ter todo um amparo, isso tudo faz com que ela procure”, ressaltou.

Atualmente, a Lei Maria da Penha relaciona cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. A delegada da DDM destaca que a maioria das agressões começa com ciúmes e sensação de posse. “Ele começa a separar a vítima da família, dos amigos, começa a manter essa vítima isolada, implicar com as atitudes dela -- como roupas -- e a fazer com que a vítima deixe o trabalho. Tudo isso vai fazendo com que ela fique mais vulnerável e com mais dificuldade de denunciar a agressão”, explicou a delegada.

Por isso, ao sinal de qualquer suspeita, mesmo que não tenha sofrido uma agressão física, a mulher deve procurar uma delegacia. “A Delegacia da Mulher está aberta 24 horas. Qualquer mulher pode comparecer. Faça o registro, que nós temos toda estrutura, não da delegacia somente, mas de uma rede de apoio para acolher essa mulher, para que ela saia dessa situação”, destacou Alessandra.

Violência psicológica predomina em Sorocaba

O Centro de Referência da Mulher (Cerem) é um órgão municipal que atende mulheres vítimas de violência em Sorocaba. Em 2022, 2.744 mulheres passaram pela instituição. Neste ano, apenas até agosto, 2.348 vítimas receberam algum tipo de auxílio no local. Dados coletados pelo órgão mostram também que o tipo mais comum de violência doméstica no município é o psicológico.

A psicóloga M.B, de 33 anos, é uma das mulheres vítimas de violência psicológica que frequentam o Cerem. “Ele já me trancou em casa, me menosprezava, dizia que eu não era capaz de nada, falava que eu era burra, então, aos poucos ele foi podando e removendo coisas que eu tinha”, conta.

Atualmente, M.B é atendida pela psicóloga do Cerem e, mesmo com os traumas, conseguiu recuperar a sua vida. “Faz dois anos que eu sai de lá. Agora, a juíza deu o divórcio, porque ele estava recusando. Eu consegui de novo a minha empresa, consegui me reerguer. Grande parte disso foi graças a ajuda que eu tive aqui, porque quando você sai dessa situação é um alívio, mas ao mesmo tempo um pânico. ‘O que eu vou fazer?’, ‘Estou segura?’... Vivemos nesse misto de emoções”.

Além do trabalho de suporte à mulher vítima de violência, realizado dentro do Cerem por terapeuta ocupacional, assistente social, psicólogo e equipe, o órgão também reforça a importância da prevenção, por meio de palestras. “Quando trabalhamos com uma vítima de violência doméstica, muitas vezes ela não se identifica como. Mas quando trazemos esse trabalho preventivo por meio de palestras que abordam o tema, às vezes, é nesse momento que ela acaba se identificando como uma mulher vítima de violência”, reforçou Mariângela Gallo, chefe de seção de Média Complexidade da Proteção Especial.

A mulher vítima de violência doméstica pode ser encaminhada ao Cerem pela Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e outros órgãos, mas também pode buscar ajuda e orientações no local por conta própria. Para isso, é necessário entrar em contato pelo telefone (15) 3235-6770 e agendar uma visita. O Cerem está localizado na avenida Presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira, 440, no Centro.

Programa de apoio psicológico a agressores diminui reincidência

A Lei Maria da Penha, criada em 2006, prevê diversos tipos de assistência e direitos às mulheres vítimas de violência doméstica, mas também estabelece medidas que devem ser cumpridas pelos autores desse tipo de crime. Além do afastamento do lar, proibição de aproximação com a vítima, familiares e testemunhas, proibição de frequentar determinados lugares a fim de preservar a integridade da mulher, entre outras condutas, a lei determina que homens com medida protetiva contra eles precisam comparecer a programas de recuperação e reeducação e, ainda, receber acompanhamento psicossocial, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

O órgão responsável por esse trabalho em Sorocaba é o Centro Estabilizado de Reabilitação do Autor da Violência Doméstica (Cerav), criado em 2014 pelo Centro de Integração da Mulher (CIM) -- programa de apoio, orientação e acolhimento de famílias vítimas de agressões.

A ação oferece atendimento psicológico individual e também atividades em grupo com o objetivo de evitar casos de reincidência dos agressores. “Temos nosso projeto, a “Casa Abrigo”, que abriga vítimas e os filhos das vítimas de violência doméstica. Vimos que tinha muitas mulheres retornando para o agressor, alimentando um círculo vicioso”, explicou Ana Maria Tossato, assistente social do Cerav.

E.L.S., morador de Sorocaba, de 53 anos, fez tratamento durante dois anos no Cerav, depois de ficar 33 dias na prisão por violência doméstica. Ele conheceu a ex-companheira, 20 anos mais jovem, em uma casa noturna da cidade. Houve desentendimentos e, após dois meses separados, ele decidiu pedir para voltar a ter um relacionamento com a mulher. Ela não aceitou e a violência ocorreu.

“Quando cheguei aqui estava desesperado. Cheguei a ponto de cometer atos violentos, porque eu não aceitava. Na verdade não era amor, era a rejeição e cada vez que eu a procurava eu piorava a situação. Achava que a culpa era dela, mas, na verdade, a culpa era totalmente minha, por eu não aceitar a rejeição”, contou E.L.S.

Hoje, o homem não precisa mais, perante a lei, participar do Cerav, mas ainda frequenta o local e compartilha a experiência com outras pessoas. “O Cerav, para mim, é um tratamento psicológico que os homens têm que ter”, declarou.

Já V.N.C. teve um relacionamento de 12 anos. Após brigas, a ex-mulher também pediu uma medida protetiva contra ele e, por isso, atualmente, ele frequenta o Cerav. Segundo o homem, não houve agressão física, no entanto, agressão verbal também pode ser considerada um tipo de violência doméstica. “Eu estava com muito ódio dela na época. O que me aliviou a mente e fez tudo melhorar para mim foi vir aqui. Você começa a conviver com pessoas com problemas parecidos com o seu”, declarou.

A assistente social do Cerav ressalta a importância do trabalho realizado no local e salienta que há bons resultados. “Temos resultados muito positivos e poucas reincidências”, explicou Ana Maria Tossato.

A medida que prevê atendimento integral e multidisciplinar aos agressores é recente, foi inserida na “Maria da Penha” em 2020, com o objetivo de evitar casos de reincidência por meio do atendimento psicossocial.

“Muitas vezes o agressor de violência doméstica foi uma vítima de violência doméstica, às vezes ele cresceu em um ambiente vendo a mãe ser agredida e ele acaba, infelizmente, reproduzindo essa violência”, concluiu Alessandra Silveira, delegada da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Sorocaba. (Vanessa Ferranti)