Mortes suspeitas por coronavírus privam 107 famílias em Sorocaba
Um levantamento exclusivo do jornal Cruzeiro do Sul, realizado pela Secretaria de Saúde de Sorocaba (SES), a pedido da reportagem, mostra que o coronavírus, além de ser letal para algumas vítimas, afeta, evidentemente, muitas famílias. Mas quando há morte suspeita -- mesmo se, depois, fica comprovado que o óbito não teve relação com a Covid-19 -- a situação é um privador de direitos em outras dezenas de lares.
Ao menos 107 famílias de Sorocaba tiveram de conviver com outros sentimentos além da dor e do sofrimento da perda. Entre eles, os de impotência e indignação. Elas foram privadas de se despedir de seus parentes, em razão dos protocolos sanitários. Mas os falecimentos nada tiveram a ver com a Covid-19. Quase que diariamente, uma família viveu essa situação, em Sorocaba, nos últimos três meses.
O primeiro óbito, inclusive, descartado como sendo de coronavírus, ocorreu em 28 de fevereiro, exatamente um mês antes da primeira morte confirmada na cidade pela Covid-19. Esse óbito também ocorreu um dia depois de a cidade registrar o primeiro caso suspeito. E o número de óbitos descartados cresceu, sendo o segundo registrado em 14 de março. A partir de 25 de março, em praticamente todos os dias, somando os 107, até a terça-feira, dia 16, houve mortes que não se confirmaram como sendo ligadas a casos do novo vírus. Desde 20 de março, portanto, foram 107 histórias que não tiveram a despedida final. Nem ao menos a de duas horas, direito apenas para os falecidos que não têm a suspeita da doença.
Sorocaba registrou, até ontem, 96 mortes pelo novo coronavírus. Quatro mortes foram registradas em 24 horas. Já os casos confirmados com a doença passaram de 3.278 para 3.406 na cidade. Foram 128 novos casos no mesmo período. Os óbitos que dependem de confirmação somam oito.
Para amenizar a situação de pessoas que estão impactadas emocionalmente com o novo coronavírus, incluindo as que sofrem com os falecimentos, a Prefeitura criou em maio o Escuta Acolhedora. O serviço telefônico é prestado por psicólogos e terapeutas ocupacionais e atende pelo número 3238-2400, das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira.
Até ontem, ao menos 250 pessoas utilizaram o serviço, que chega a registrar 15 atendimentos por dia. Entre as queixas mais registradas está o medo da doença, a rotina, a solidão e, justamente, o luto. Mulheres e pessoas acima de 40 anos são os que mais procuram o serviço.
Situação gera tristeza e indignação
Gilto Berigo, que tinha 84 anos, foi umas das pessoas que faleceu sem que sua família tivesse direito à última despedida. Filhos, netos e bisnetos choraram, mas sem a presença de Gilto. Ele era um homem ativo, apesar da idade. Fazia caminhada e acompanhava de maneira assídua seu grupo de terceira idade. Morador do bairro Nova Esperança, Gilto preferia fazer tudo sozinho. Conforme a família, ele não era teimoso, mas independente.
E foi sozinho -- ao menos longe dos membros de sua família -- que ele passou mal no Terminal Santo Antonio, em 8 de junho. Faleceu no local, mesmo com a tentativa de ajuda de quem estava por perto. A suspeita: Covid-19.
À família, o choro descomedido, a indignação compreensível e as obrigações legais, tudo acompanhado pelo luto. Uma semana depois, veio o resultado do Adolf Lutz: não era Covid-19. “Ele saiu do terminal e foi colocado em um caixão. De lá, enterrado dez horas da noite”, diz, com indignação, Gílson Antunes Berigo, um dos filhos de Gilto. “Fomos impedidos de trocar a roupa que ele estava vestindo. Fomos impedidos de colocar, arrumar o corpo no caixão para que, pelo menos, as bisnetas pudessem vê-lo pela última vez”, lamenta.
Gílson Berigo defende ao menos a abertura de discussões em torno do debate sobre os protocolos adotados pelas instituições. “Acho que tinha que ser tratado de outra forma. Espero que esse protocolo seja mudado. Autópsia verbal não poderia ser colhida de pessoas que não tiveram a convivência diária com a pessoa que morreu”, opina. De acordo com ele, não se pode jogar uma pessoa de qualquer maneira em uma cova. A autópsia verbal é uma das orientações que podem ser usadas para esclarecer uma morte.
Além da saudade, o “seu” Gilto deixa uma lacuna no trabalho de assistência religiosa. Ele era capelão no Conjunto Hospitalar de Sorocaba (CHS) havia 23 anos, atividade que se orgulhava muito de exercer.
Ausência dos rituais pode até atrapalhar enfrentamento de luto
A psicóloga Rayane Aparecida Rodrigues lembra do tamanho do sofrimento e da dificuldade para as famílias que não estão tendo a oportunidade de se despedir de seus entes, “fazendo com que fique uma ideia fragmentada da perda, pois além de não ter a oportunidade de acompanhar o enfermo nesse período, também não puderam colocar um ponto final na despedida”. “Isso tem aumentado a dificuldade das pessoas no enfrentamento do processo de luto, tanto para as famílias que perderam entes pela Covid-19, tanto para as que foram por outras causas”, explica.
Ainda conforme ela, “passamos anos nos preparando para a vida, mas nunca estamos preparados para a morte”. “Negar os sentimentos é a pior opção. A expressão é fundamental para o desenvolvimento no processo de luto. Embora seja um processo muito doloroso, é importante reconhecer nossa impotência diante da situação e lembrar-se sempre do que foi feito dentro das possibilidades. Infelizmente, não há recursos mágicos para esse enfrentamento, mas é preciso uma atenção para essas famílias, para que esse processo não se torne patológico e resulte em doenças psicossomáticas”, alerta.
“A psicoterapia, embora não obrigatória, auxilia nesse processo de luto, com a expressão dos sentimentos na situação de perda, solidão, e colabora com a elaboração do luto. A psicoterapia também pode contribuir como elemento pretendido para que não se desenvolva um processo patológico.” Ainda conforme Rayane, o fato de não haver despedida é um agravante maior para a elaboração do luto. “Gera um sentimento de revolta e de injustiça”, comenta.
Silvia Teixeira de Lima, também psicóloga, diz que o fato das pessoas não saberem a natureza do vírus as deixa mais vulneráveis e aflitas. “Tudo fica no sentido do olhar, do entender que tudo é vírus. Claro que confunde a percepção das pessoas, dos colaboradores, dos médicos, das equipes de saúde, que estão tentando desvendar esse mistério do vírus. A situação de medo faz exatamente com que se proceda de uma forma inadequada, para depois analisar a situação. Infelizmente, estaremos, ainda, tendo situações dessa natureza, onde as pessoas morrerão, sendo enterradas sem os rituais tradicionais”, comenta.
“Estamos lidando ainda com o desconhecido. É muito difícil realmente entender que o nosso parente morreu, se foi de Covid ou não, se poderia ter feito um velório tradicional ou se simplesmente faz da forma como o protocolo demanda. As pessoas sofrem com isso”, diz. Ela defende a despedida, ao menos que seja on-line. “Que cumpra de alguma forma, um ritual mínimo”, pondera. Silva alerta que o momento deve ser de calma, cautela e atenção. (Marcel Scinocca)