Quando a Matemática é o grande desafio

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Jesaías atribui temor ao modo como a disciplina é apresentada. Crédito da foto: Acervo Pessoal

“Acho difícil, não sei fazer a divisão, não consigo”, desabafa a pequena Júlia Rezende, de 10 anos. Crédito da foto: Arquivo Pessoal

Ela causa dor de cabeça, dor de barriga, suor frio, pânico. Essa tal de Matemática ainda é um bicho-de-sete-cabeças para muitas pessoas. Todos os anos, o noticiário aponta os índices de estudantes com dificuldades na disciplina. O dado mais alarmante foi o de 2017, quando o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) apontou que 90% dos estudantes concluíram o ensino médio sem saber o que deveriam de Matemática.

Especialistas apontam que a dificuldade vem do começo, dos anos iniciais de aprendizagem, e quando não é sanada, vai se transformando num grande monstro. Numa pequena enquete realizada pela reportagem, com participação de pessoas das mais variadas idades e graus de escolaridade, deu para constatar que o problema vem lá de trás.

A atriz Isadora Lomardo, 29 anos, conta que sempre teve muita dificuldade com a matéria. “Lembro de quando estava aprendendo contas de divisão e tinha que ficar no intervalo fazendo, porque não conseguia”, conta. O pior aconteceu quando ela entrou num colégio particular. “Eu tinha 8 anos e estava na terceira série. Lembro que a gente não podia entrar na sala de aula se não respondesse corretamente uma sequência de tabuadas aleatórias. Ali começou meu pânico, a ponto de acordar chorando no meio da noite com medo de ir pra aula de manhã”, recorda. A mãe de Isadora tinha de dar um medicamento fitoterápico para que ela voltasse a dormir. “Acho que meu bloqueio começou ali e desde então odeio Matemática.”

Na opinião de Isadora, se a forma de ensinar tivesse sido mais leve, ao menos poderia ter tido a chance de aprender melhor, caso seu interesse tivesse sido despertado -- ao invés do pânico. Para se virar na escola, ela conta que acabou usando o artifício da memória e decorando mesmo.

Um monstro

Igualmente o fotógrafo Tiago Mantovani, 39 anos, não se dá bem com a Matemática desde criança. “Sempre tive dificuldade nessa matéria. Ia bem em tudo, mas quando eu tinha prova de Matemática me dava até dor de barriga antes de ir para escola”, confidencia. Pra conseguir passar de ano, ele conta que colava. “Não tinha o que fazer”, lamenta.

Tiago foi ter uma professora muito boa nessa disciplina quando estava na 7ª série (8º ano do fundamental). “Aí peguei o gosto por estudar Matemática. E olha que quando eu estudava, achava que tinha entendido tudo, mas chegava na hora da prova era nota vermelha”, diz. Mesmo assim considera que essa professora que teve foi um anjo que caiu do céu. “Foi com ela que consegui aprender alguma coisa que levei para o ensino médio. Mas ainda a dificuldade estava dentro de mim. Até na faculdade eu via a Matemática como monstro.”

Ele conta que quando decidiu fazer Marketing e foi ver a grade do curso, tinha Contabilidade. “Falei beleza, vou passar em tudo, aliás quase tudo. Vou ficar em DP nessa matéria. Não deu outra, fiquei em DP mesmo”. Na opinião dele, caso a primeira professora, lá dos anos iniciais, tivesse tido mais paciência de explicar, ele acredita que poderia ter aprendido.

Júlia Rezende, 10 anos, também sofre com a matéria. “Acho difícil, não sei fazer a divisão, não consigo”, conta. Conforme ela, a professora fala que é preciso treinar mais. Ela estuda com seu pai, o Reginaldo, mas mesmo assim tem dificuldade. Quando perguntado para Júlia se a professora tenta ensinar a matéria de outras formas, usando mais o lúdico como jogos ou outras alternativas, ela afirma que isso não é feito. Júlia estuda em uma escola municipal e pelos seus cálculos a sala tem uns 30 alunos. A professora fica sozinha, sem auxiliar. Apesar de não entender as continhas de divisão, ela vai bem nas outras operações e consegue tirar nota. Júlia acredita que seja por isso que não foi indicada para frequentar as aulas de reforço, no contraturno escolar.

Discalculia

Depois de sofrer bastante na época da escola, a professora Isleide Messias hoje trabalha com cálculos. Crédito da foto: Emidio Marques

Já a professora de línguas Isleide Pereira Messias, 41 anos, apresenta um caso diferente e que também pode ocorrer com muitas outras pessoas. Ela repetiu três vezes a 3ª série (4º ano do fundamental) por causa dessa disciplina. “Detesto Matemática”, disse. “Eu tinha tanta dificuldade com os números, que chegava a me doer a cabeça. A professora explicava e era como se ela estivesse falando outro idioma. Só depois descobri que eu sofria de discalculia.” Trata-se de uma desordem neurológica que afeta a habilidade de compreender e manipular números. Isleide conseguiu aos poucos superar essa dificuldade e hoje trabalha na tesouraria de uma instituição. “Trabalho com cálculos e gosto muito”, revela.

Ensino deve ser um processo e relacionado ao cotidiano do aluno

O professor Jesaías da Silva Souza, mestre em Educação Matemática -- e que leciona na Universidade de Sorocaba (Uniso) -- atribui o temor à essa disciplina ao modo como o aluno tem contato com ela. “Ao se deparar com um problema, o estudante deve ter em mente que realizar mais de uma tentativa de resolução não significa incapacidade, mas que isso é um processo, assim como em um jogo, nas situações do dia a dia, pois a Matemática é uma ciência do pensar, e isto é inerente a todos.”

Jesaías, que é autor do livro “Os por quês da Matemática”, afirma que é possível fazer algo para que os estudantes gostem mais dessa matéria, como criar ambientes de aprendizagem que permitam a construção do conhecimento, que valorizem a participação do aluno, relacionando com questões da realidade dele, e que exista uma atenção para suas dificuldades. “Temos um grupo de estudos de professores da Uniso, o Grupo de Compartilhamento de Experiências de Ensino (GCEE), que discute a prática docente.”

Jesaías atribui temor ao modo como a disciplina é apresentada. Crédito da foto: Acervo Pessoal

O professor José Antonio Salvador, do departamento de Matemática, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus Sorocaba, lembra que a Matemática está em tudo. “Basta observar o mundo, o seu dia a dia. Você levanta medindo, comparando, olhando horas, quantidade de alimentos que ingere, mas as pessoas não pensam sobre isso”, pondera. O que deveria ser natural, acaba virando algo temeroso logo nos primeiros anos escolares. “Está relacionado com a falta de atenção, concentração, de um ambiente propício para estudarem e ainda o modo como é ensinada a Matemática”, afirma.

José Antonio diz que atualmente há mais alternativas que podem propiciar uma aprendizagem melhor, como o uso de problemas reais, de jogos e modelagem. Podem também ser propostas questões interdisciplinares que estimulem o aluno a ficar mais interessado na Matemática. “Para isso temos na UFSCar especialização e mestrado para professores de Matemática. Procuramos fazer com que os professores produzam atividades diferenciadas e os relatos que a gente tem é que os alunos acabam gostando e aprendendo.”

Formação

A formação dos professores é um ponto importante. Por outro lado, José Antonio considera que as escolas deveriam dar chance para os professores dos anos iniciais do ensino fundamental se prepararem melhor e terem tempo para aplicar métodos diferenciados. “O problema é que hoje os professores estão sobrecarregados. Dão aulas em várias escolas e ficam sem tempo para pensar em atividades alternativas.”

Os docentes também são obrigados a seguir apostilas e correr com a matéria, pois são cobrados, o que muitas vezes inviabiliza mais explicações. “Temos de ensinar o aluno a fazer e só se aprende fazendo. A Matemática é uma matéria cumulativa. Tem certos conceitos e problemas que precisam de conhecimentos prévios, é diferente de outra disciplina, que pode ser aprendida sem ter um pré-requisito. Na Matemática, o conhecimento mais avançado depende de um anterior.” (Daniela Jacinto)