Especialistas alertam sobre crença em perseguição

Fenômeno chamado de gangstalking ganha espaço no ambiente digital e afeta a saúde mental

Por Cruzeiro do Sul

Pessoa acredita estar sendo perseguida por instituições e organizações por meio de ações orquestradas

Ao longo da última década, um fenômeno complexo e controverso ganhou espaço no ambiente digital quase que imperceptivelmente e preocupa especialistas em saúde mental. Em diferentes países, pessoas que se denominam indivíduos-alvo (ou target individual) passaram a se reunir em grupos e fóruns digitais onde denunciam a ação orquestrada de pessoas e organizações para desacreditá-las, prejudicá-las e, no limite, levá-las à morte.

Com a validação de quem acredita ser vítima do mesmo tipo de assédio, algumas dessas pessoas deixaram o espaço virtual para atuar também no ambiente analógico. Criaram associações e passaram a encher assembleias estaduais e câmaras municipais de pedidos de informação e sugestões de leis de iniciativa popular para proteger as vítimas do chamado gangstalking — a crença de que se é alvo de uma perseguição organizada por um grupo desconhecido de pessoas com acessos a modernos dispositivos capazes de interpretar os pensamentos e modificar o comportamento de suas vítimas.

Professora da Universidade Politécnica da Califórnia, a assistente social e psicoterapeuta Liz Johnston se interessou pelo tema ao constatar que dois de seus pacientes compartilhavam a mesma convicção. “Buscando meios de ajudá-los, comecei a pesquisar”, contou Liz, que não tardou a perceber a relevância do tema e suas implicações: embora incerto, o número de pessoas que se autodeclaram indivíduos-alvo não é irrelevante.

A pesquisadora explica que o termo gangstalking é um conceito emergente no campo das crenças persecutórias. “Caracteriza-se pela crença pessoal de ser perseguido ou vigiado por um grupo difuso de pessoas”, diz. Ao contrário do que acontece nos casos de perseguição individual [stalking], as vítimas do gangstalking não identificam claramente seus perseguidores, acreditando tratar-se, na maioria das vezes, de pessoas associadas a agências governamentais ou autoridades policiais. “Essas pessoas relatam invasões domiciliares, vigilância aberta ou encoberta, dor infligida por dispositivos remotos e controle eletrônico da mente”, continua a professora.

O conceito abrange áreas como criminologia, psicologia, redes sociais e serviço social, mas, como não se encaixa perfeitamente em uma única categoria de investigação, há, ainda, uma escassez de pesquisas acadêmicas. “Apesar disso, os TIs são frequentemente considerados paranoicos. Um diagnóstico que pode criar mais problemas do que ajudar a resolver a questão”, afirma Liz.

Internet

O termo gangstalking não consta de nenhum manual de diagnóstico psiquiátrico, mas relatos dão conta de um sofrimento real. Conforme explica o professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Paulo Dalgalarrondo em um livro que é referência acadêmica no estudo dos transtornos mentais, a crença em ser perseguido é o tipo de delírio mais frequente, podendo surgir de experiências sensoriais intensas, como alucinações.

Com o advento da internet, comportamentos que antes demoravam a se propagar passaram a se espalhar rapidamente pelo mundo, sem filtros. No Brasil, há ao menos duas entidades nacionais com CNPJ ativo junto à Receita Federal. Uma foi fundada em setembro de 2022, para proteger e amparar as vítimas de tortura psicoeletrônica, e tem sede em Nova Friburgo (RJ). A outra, dedicada à mesma causa, funciona no Recife.

“O indivíduo acredita com toda a convicção que é vítima de um complô e que está sendo perseguido por pessoas conhecidas ou desconhecidas, não lhe restando alternativa a não ser integrar [tal crença] em sua vida por meio do delírio”, disse o professor Dalgalarrondo.

“O que chama a atenção é a organização, a reunião dessas pessoas nas redes sociais. É a primeira vez que vejo algo assim, tão organizado”, avalia o professor de pós-graduação do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Alexandre Loch. O professor continua sobre o cenário atual: “Uma coisa que me chamou a atenção e que acredito que poderia ser pesquisada é que há alguns elementos da cultura contemporânea que podem servir de combustível para o surgimento de alguns sintomas [de transtornos mentais]. Vivemos em uma sociedade muito paranoica e alguns fenômenos culturais podem engatilhar sintomas psicóticos. Por exemplo, a [exacerbação da] polarização [político-ideológica]. A briga entre esquerda e direita. Acho que, em uma mente mais fértil, isso pode criar ou alimentar fenômenos como o gangstalking”, acrescentou Loch ao explicar que há, basicamente, dois principais sintomas psicóticos: as alucinações, que podem envolver qualquer um dos cinco sentidos, e os delírios, a crença em coisas que não existem. “Como, por exemplo, crer ser perseguido pelo FBI ou por quem quer que seja”, ponderou

“É sempre importante estarmos atentos a esses dois tipos de sintomas. Na maioria das vezes, eles tendem a passar sem maiores consequências. Mesmo assim, são um fator de alerta, podendo indicar outros transtornos”, observou Loch.

“A pessoa pode, por exemplo, estar deprimida, ansiosa ou desenvolvendo outros transtornos. Daí a importância de identificarmos esses sintomas e dedicarmos alguma atenção ao tema. Até porque, basta ver os relatos das pessoas para verificar que elas juram não estar doentes, embora algumas afirmem ouvir vozes há sete, oito anos, ou que há quem pode ler seus pensamentos. Quando uma pessoa dessas vai buscar ajuda? Parentes, amigos e profissionais da saúde têm que estar atentos a isso”, concluiu o professor. (Da Redação, com informações de Agência Brasil)