Inclusão e debate racial chegam ao ambiente corporativo
Protestos antirracistas que ganharam o mundo nos últimos dias após a morte de George Floyd, trouxeram a questão racial e a necessidade de igualdade para o centro dos debates. Crédito da foto: Angela Weiss / AFP
Na última semana, a conta no Linkedin do presidente da Gerdau, Gustavo Werneck, ganhou uma novo foto. No lugar, está Liliane Rocha, CEO da Gestão Kairós, consultoria em Sustentabilidade e Diversidade. A ideia acompanha um movimento iniciado na classe artística -- com nomes como o ator Paulo Gustavo, que cedeu sua página no Instagram para a filósofa Djamila Ribeiro -- para que os milhões de seguidores de pessoas brancas sejam impactados por conteúdos feitos por pessoas negras sobre a pauta antirracista.
“‘Quem tem a rede que ele tem de liderança empresarial no Brasil? É uma ação transformadora uma mulher negra nesse espaço de fala. A página de um CEO tem rigor, influencia a empresa, a estratégia de negócio, os acionistas. Por isso, não vimos presidentes cedendo”, explica Liliane.
Partiu da especialista em diversidade a proposta de ocupação na rede social profissional. Para o CEO, aceitar o convite faz parte de entender que as empresas devem ser protagonistas das mudanças na sociedade. “Precisamos promover uma cultura antirracista e eliminar essa questão de forma definitiva. Ao proporcionar o debate numa rede social com perfil corporativo, temos a possibilidade de atingir e sensibilizar executivos e líderes empresariais‘, aponta ele.
Em 2019, a Gerdau criou um programa de atração de profissionais focado na contratação de pessoas negras e também passou a publicar dados sobre o perfil de diversidade na empresa. Os colaboradores negros representam hoje 32% do quadro de funcionários e ocupam 15% das posições de liderança.
A CEO da Empregueafro, consultoria em diversidade étnico-racial, Patrícia Santos, ocupou nos últimos dias o perfil do diretor executivo da Tawil Comunicação, Marc Tawil. A ação, chamada Vidas Negras Importam, reúne 38 profissionais, mas apenas um é do mundo empresarial.
“Isso mostra o quanto o mundo dos negócios ainda precisa ser ocupado por profissionais negros. Você vê que a maioria das pessoas que se dispôs a fazer parte é de áreas ligadas à cultura”, destaca Patrícia.
A consultora em diversidade, Liliane Rocha, ocupou o perfil do CEO da Gerdau com conteúdos da pauta antirracista voltada para o mercado de trabalho. Crédito da foto: Leonardo Perez
Os dados mostram que as empresas brasileiras ainda estão distantes de alcançar a equidade racial. Apesar de a população do País ser composta por 56% de negros, segundo o IBGE, eles são apenas 35% no quadro de funcionários, de acordo com o estudo do Instituto Ethos.
Quando subimos a hierarquia de cargos, a diferença é ainda mais discrepante. De acordo com uma pesquisa feita pela consultoria de recrutamento Talenses, com 532 empresas, apenas 5% delas têm presidentes negros. O recorte de gênero e raça é ainda mais dramático: apenas uma dessas corporações afirmou ter uma presidente negra.
“Eu estudei, trabalhei em multinacionais, fui reconhecida como uma das 101 Lideranças Globais de Diversidade. Mas, ainda assim, qual a chance de eu estar nesse espaço? Nessa geração nossa, tem uma Rachel Maia (atualmente CEO da Lacoste no Brasil), não são três”, aponta Liliane.
Para ajudar a diminuir as desigualdades, o Ministério Público do Trabalho criou o Projeto Nacional de Inclusão Social de Jovens Negras e Negros no Mercado de Trabalho, coordenado pela procuradora Valdirene Assis. No ano passado, o órgão fez com que grandes agências de publicidade, empresas de recursos humanos e universidades paulistas firmassem um pacto para ampliar a participação de profissionais negros nas empresas.
Do segundo semestre do ano passado para cá, o segmento que mais avançou foi o publicitário. “Com a pandemia, interrompemos as atividades, mas entre junho e agosto vamos realizar um evento digital com oficinas de capacitação, oferta de vagas e debates”, conta Valdirene.
O coordenador da Iniciativa Empresarial pela Igualdade, Raphael Vicente, acredita que em 2024 será possível começar a ver alguma mudança nos índices. “Temos uma taxa de crescimento anual de 0,20% entre os negros que ocupam cargos de gerência e alta liderança. Se não fizermos nenhuma intervenção, para chegarmos ao porcentual de negros na cidade de São Paulo, 37%, levaríamos pelo menos 200 anos. A situação que vivemos hoje em números é a mesma de 20 anos atrás. É um trabalho de médio e longo prazos até que esses profissionais consigam subir”.
Exceções no alto escalão
Hoje vice-presidente da Carenet Longevity, healthtech que tem um braço na Suíça, Fernando Paiva, de 40 anos, tem um currículo extenso que passa por formações em instituições como a University of La Verne, na Califórnia, e a escola de negócios de Harvard. Registra passagens por grandes empresas em cargos executivos, como Bradesco e BNP Paribas Cardif.
Fernando Paiva hoje é vice-presidente da Carenet Longevity, healthtech. Crédito da foto: Mario Duarte
“Sou neto de escravos diretos. Eu fui o primeiro da minha família a chegar em posições mais altas na hierarquia, o único que fez programa executivo internacional e um dos poucos que teve oportunidade de viajar para outros países, a trabalho e a turismo.”
No entanto, o currículo recheado e a ascensão profissional não fizeram com que Fernando ficasse isento do racismo mesmo em altos cargos. “Em uma posição de quase C-level em uma grande empresa, quando fui apresentado à equipe que eu ia liderar, um dos colaboradores disse que na história familiar dele preto trabalhava para ele e não o contrário. Foi a primeira vez que vi uma demissão por justa causa”, conta.
Entre outros casos de racismo que sofreu, ele também enumera uma tentativa para posição de gerência. “A gerente do RH adorou o meu perfil. Mas, quando eu cheguei na sala do diretor, ele brigou com ela porque na empresa dele não trabalha preto.”
No ano passado, Fernando foi a mais de 60 congressos de saúde nacionais e internacionais e diz ter certeza de que é o único executivo negro nesse ecossistema. “Eu sempre me preocupo com a roupa que uso. Como ando com muitos executivos internacionais, não uso terno escuro para não acharem que sou o segurança. Você sobe na estrutura hierárquica e vai ficando pior. Para eu chegar aonde eu cheguei e para me manter aqui, eu tenho que tomar uma série de cuidados”, explica.
Para ser antirracista no mercado de trabalho
Para incentivar pessoas e empresas a assumirem um compromisso com a luta antirracista, uma parceria entre o Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) e o Sistema Brasil - ambos organizações sem fins lucrativos -- deu início no último mês ao movimento Seja Antirracista. O manifesto, criado pelos dois órgãos que atuam na promoção da igualdade racial no mundo empresarial, já reúne assinaturas de mais de 38 mil pessoas e 260 empresas de todos os setores e portes, entre elas a Gerdau.
“É importante assumir um compromisso para ser antirracista além das hashtags. Estamos recolhendo assinaturas para conseguir trabalhar com essas pessoas e empresas e desenvolver ações práticas para estabelecer medidas antirracistas”, explica Heloise da Costa, analista de desenvolvimento de ações afirmativas e treinamento em empresas no ID_BR.
“As empresas tendem a achar que a questão racial tem que ser pautada na questão da caridade, mas é preciso compreender que uma sociedade mais igualitária racialmente é boa para todo mundo, não só para população negra”, completa. (Marina Dayrell - Estadão Conteúdo)