Megafauna do câmpus: Uma viagem ao passado pré-histórico do estado de São Paulo

Os dinossauros passavam provavelmente pela região da Uniso durante as migrações

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Câmpus da Uniso com ilustração de Felipe A. Elias

Na edição passada da revista Uniso Ciência (dez./2020), você viajou ao distante período Cretáceo, o fim da grande era dos dinossauros. Nós descobrimos que, há 65 milhões de anos, o clima na região do estado de São Paulo deveria ser quente e seco, de modo que é bastante provável que a paisagem fosse árida, inadequada para sustentar uma população significativa de animais de grande porte — em vez deles, você encontraria uma variedade de crocodilos terrestres. Mas isso não quer dizer que os grandes dinossauros não marcaram presença por aqui de vez em quando; provavelmente eles passavam pela região da Uniso durante as migrações, acompanhando a variação das estações. Isso incluía bestas herbívoras monumentais, como o Austroposeidon magnificus, além de carnívoros como os abelissauros (semelhantes a tiranossauros) e os megarraptores, cujas ilustrações você pode conferir na edição anterior.

O paleontólogo e paleoartista paulistano Felipe Alves Elias, membro da Divisão de Difusão Cultural do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) desde 2011 e autor das ilustrações incluídas nesta reportagem, explica que, durante os mais de 40 milhões de anos seguintes, houve a grande extinção dos dinossauros — provavelmente devido ao impacto de um grande meteoro — e o mundo passou por mudanças ambientais importantes. “Quando os ecossistemas se recuperaram”, ele conta, “o clima, que era majoritariamente árido, começou a dar lugar a um clima ainda muito quente, porém muito mais úmido. No mundo todo, houve a proliferação de formações florestais e, nessa época, a fauna passou a ser composta por animais que estavam começando a ocupar os nichos que foram deixados vazios pelos dinossauros. Houve, principalmente, uma diversificação dos mamíferos, que já existiam junto aos dinossauros, mas que ainda eram animais de pequeno porte, mais generalistas. Em vez disso, eles começaram a evoluir para ocupar o lugar que os dinossauros deixaram. O mesmo aconteceu com as aves. E, depois disso, o clima ainda continuou predominantemente quente, mas nós começamos a ter algumas variações no nível de umidade, então nós ainda tínhamos áreas úmidas, com grandes florestas, mas também passamos a ter períodos de estiagem. A paisagem assim mudou, dando lugar aos capinzais, cobertos de gramíneas.”

O pesquisador conta que, infelizmente, não existem muitos registros fósseis desses períodos no estado de São Paulo, então os cientistas precisam recorrer aos registros de estados vizinhos, como o Rio de Janeiro, para ter uma ideia do que existia por aqui. Num primeiro momento, tudo indica que a fauna local era rica em marsupiais (parecidos como os gambás contemporâneos), aves predadoras de pequeno porte (parecidas com as seriemas), serpentes, anfíbios, rãs, tartarugas e crocodilos terrestres. Depois, com a sazonalidade entre os períodos úmidos e secos, passaram a predominar as aves terrestres e os marsupiais, além das primeiras formas de tatus. Elias destaca que houve um período em que a América do Sul ficou isolada de qualquer outra massa continental, o que fez com que a fauna evoluísse de maneira independente, dando origem a animais como os tatus, os tamanduás e as preguiças, que são um grupo típico da América do Sul. Posteriormente, quando houve a formação de uma “ponte de terra” (ou o que chamamos de América Central), esses animais puderam migrar para o hemisfério Norte e outras espécies foram introduzidas na nossa região, como os famosos tigres-dentes-de-sabre.

Nesta edição, nós continuamos o nosso passeio através do tempo, para conhecer mais alguns dos animais que possivelmente viveram na região onde hoje está localizada a Universidade de Sorocaba (Uniso). Nosso programa começa no fim do Paleogeno (65 a 23 milhões de anos atrás, aproximadamente), especialmente para conhecermos uma velha ancestral da seriema, a querida mascote da Uniso. Aperte o cinto e faça uma boa viagem — mas tome todo o cuidado; as coisas podiam ser um pouquinho mais perigosas há alguns milhões de anos.

22 milhões de anos atrás (Transição entre o Paleogeno e o Neogeno)

Nesse período, o clima voltou a ser seco, mas não tão seco quanto na época dos grandes dinossauros, e as florestas úmidas deram lugar a pradarias abertas, como grandes savanas cobertas por gramíneas, as quais viriam a ser mais próprias para o desenvolvimento de grandes mamíferos. Elias diz que os registros fósseis mais relevantes desse período foram encontrados no Vale do Paraíba, na região de Taubaté, a cerca de 230 km de Sorocaba.

“Essa região é uma grande depressão tectônica, que se formou durante a separação entre a América do Sul e a África. Após sua formação, a depressão passou a acumular sedimentos, o que explica os fósseis encontrados na região”, explica o paleontólogo. São esses fósseis que podem oferecer uma ideia de que tipos de seres vivos habitavam o interior de São Paulo.

O grande destaque é a Paraphysornis brasiliensis, uma parente ancestral das seriemas, do grupo das “aves do terror”, nome dado a uma grande família de gigantescas aves carnívoras pré-históricas. Tal qual a seriema contemporânea, a Paraphysornis era uma predadora, mas você provavelmente não iria gostar de dar de cara com ela por aí; ela atingia quase 2m de altura e, com seu bico pesado, certamente poderia causar grandes danos a um mamífero desavisado.

Além da Paraphysornis, Elias destaca que um viajante do tempo também poderia se deparar com animais semelhantes aos existentes hoje, como flamingos, urubus e morcegos ancestrais, incluindo o Mormopterus faustoi, o mais antigo morcego já descoberto no Brasil. Como esses são animais de constituição frágil, seus fósseis são especialmente raros.

2,5 milhões de anos a 5 mil anos trás (Período Quaternário)

O Período Quaternário teve início há 2,5 milhões de anos e se estende até o presente. Durante esse período, houve vários períodos glaciais — as chamadas Eras do Gelo —, mas, no Brasil (incluindo o interior de São Paulo), não houve gelo de fato, ainda que a temperatura média tenha caído.

“O que aconteceu nesses períodos mais frios foi uma queda na umidade do ar, restringindo ainda mais a distribuição das florestas úmidas e fazendo com que paisagens como o cerrado proliferassem. São Paulo fazia parte desse contexto, com uma Mata Atlântica bastante tímida e a maior parte da área ocupada por cerrado. Esses ambientes eram propícios para a megafauna, nome dado aos mamíferos de grandes proporções que se adaptaram a essas condições ambientais”, explica Elias.

Nesses ambientes seria possível encontrar os famosos tigres-dentes-de-sabre, felinos maiores do que os tigres e os leões, seus parentes contemporâneos. A principal característica desses animais eram os dentes caninos gigantescos, muito provavelmente usados para caçar grandes herbívoros, como as preguiças gigantes, que podiam chegar a pesar seis toneladas, e os mastodontes.

Por falar em mastodontes, os grandes elefantes das eras glaciais, é bastante provável que os exemplares brasileiros não tivessem a tradicional cobertura de pelos, como as espécies do hemisfério Norte. “O mais provável é que sua pele fosse nua, com uma pelagem rala, assim como a dos elefantes atuais, uma vez que o clima e o ambiente eram muito semelhantes aos que temos hoje”, diz Elias.

Além desses animais, havia tatus gigantes do tamanho de Fuscas, que, de tão grandes, nem mesmo os tigres-dentes-de-sabre seriam capazes de predar. Havia também animais semelhantes aos atuais rinocerontes, mas sem os chifres, chamados Toxodon platensis, uma espécie exclusiva da América do Sul. “Essa foi a espécie de megamamífero mais comum por aqui e uma das que sobreviveu por mais tempo. Alguns fósseis sugerem que a espécie permaneceu no estado de São Paulo até cerca de 5 mil anos atrás, quando a maior parte da megafauna já havia desaparecido. Alguns ossos mostram, inclusive, marcas de interação humana”, destaca o palentólogo.

Onde foi parar a megafauna?

O clima planetário segue padrões intercalados de frio e calor. Há 12 mil anos — quando o ser humano já habitava a América do Sul —, a última Era do Gelo chegava ao fim, o que significou um aumento considerável na temperatura média no planeta. Mais uma vez, o clima no Brasil se tornou quente e úmido, o que fez com que a Mata Atlântica voltasse a ocupar o espaço do cerrado, que era o ecossistema típico da megafauna brasileira.

É bastante provável que esse tenha sido o motivo da extinção desses animais, mas não há um consenso entre os autores. Alguns defendem que os culpados, ao menos em parte, foram os nossos ancestrais. Elias explica: “Hoje, na Paleontologia, existe uma visão bastante disseminada de que o processo de extinção da megafauna se deu em momentos distintos, devido a causas distintas, diferentemente da extinção dos dinossauros. Em alguns desses casos, parece mais consolidada a hipótese da participação humana nessa extinção. O exemplo do que aconteceu na Austrália é bastante interessante, pois, quando a gente olha o registro da existência da megafauna antes e após a introdução das populações humanas naquela região, de fato percebemos uma queda muito significativa na diversidade desse registro, então há um forte indício de que as populações humanas contribuíram de forma bastante participativa. Mas, em outras partes do mundo, essa questão não está muito clara, até porque nós temos situações em que a megafauna ficou preservada em algumas regiões, mesmo com uma presença humana muito longa, como é o caso do continente africano, que até hoje preserva a sua megafauna.”

O paleontólogo conta que, no caso da América do Sul, a questão é mais complexa. Alguns autores defendem que foi a mudança na vegetação típica da região o grande fator motivador para a extinção da megafauna. Geralmente, quando há uma mudança brusca nas condições ambientais, são as espécies mais especializadas as primeiras a desaparecer, enquanto as espécies mais generalistas (inclusive animais da nossa fauna que ainda existem hoje) têm mais chance de sobreviver nesses períodos de transição. Mas é possível que tenha havido uma combinação desses dois fatores, mudanças climáticas e ação humana, até mesmo pelo que apontam os registros fósseis no caso do Toxodon platensis. Serve de alerta, de qualquer maneira, para a necessidade de preservação das espécies contemporâneas.

Confira aqui todas as ilustrações: https://cutt.ly/AO23dCH

O conjunto de ilustrações contido nesta reportagem é de autoria do paleoartista Felipe A. Elias e teve sua publicação autorizada como parte do projeto Uniso Ciência. Essas ilustrações podem ser apreciadas no site PaleoZoo Brazil (https://www.paleozoobr.com/).

Texto: Guilherme Profeta